O que é o homem?

Entregue exclusivamente a si mesmo, o ser humano acaba por se autodestruir, pois amputado e truncado do próprio Deus que o criou, o conserva na existência e o conduz ao longo de uma história de salvação em vista da liberdade plena.

A Pontifícia Comissão Bíblica dedicou uma atenção especial, a pedido do Papa Francisco, à questão: “O que é o homem?”. Esta questão é essencial para que a Igreja possa responder, com fundamento, aos desafios que se colocam na atualidade.

Evandro Agazzi[1], filósofo italiano de referência, remete-nos para a reflexão sobre a realidade do ser homem. Manifestando um interesse particular pelas questões antropológica, ética, metafísica e também da filosofia das ciências, convida-nos a uma reflexão abrangente sobre o que é o homem. Os seus vastos estudos permitem-nos pensar a complexidade do ser humano olhando-o como mistério a respeitar. E. Agazzi alerta-nos para o facto de que a ciência moderna, remontando aos séc. XVI e XVII, enferma uma perspetiva redutora. Esta perspetiva baseada na causa eficiente, assente na relação causa efeito, ignora outras dimensões constitutivas da realidade humana, nomeadamente as causas material, formal e final. Retomando investigações realizadas pelos neuro-fisiólogos como J. C. Eccles (1903-1997) e J. Freeman (1927-2016), Agazzi constata, por um lado, que a atividade da mente não pode ser localizada em nenhuma secção do cérebro e, por outro, que a “ação da mente sobre o cérebro sucede sem consumo de energia, facto impossível se a mente fosse um sistema físico”. Isto leva-o a abrir-se a outro tipo de causalidade e, simultaneamente, à dimensão ética e espiritual da pessoa, nomeadamente às questões do sentido, do dever e da liberdade.[2]

Os Exercícios Espirituais (EE) de Inácio de Loiola ajudam a responder à nossa questão, revalorizando as formas de causalidade atrás referidas. Assim, nos EE encontramos uma resposta não só para a pergunta o que é o homem, mas também para a compreensão daqueles tipos de causalidade que ampliam a visão sobre a natureza e a realidade humana, bem como sobre a causalidade. O texto dos EE inicia com as seguintes palavras: “O homem é criado para…” (EE 23). Trata-se de uma intencionalidade ou causalidade final. O ser humano é projeto e devir. É criado por Deus, para Deus, para já ir vivendo em Deus: “Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher” (Gn 1, 27).

Podemos referir-nos também a uma certa causalidade formal. Dependendo do modo como o ser humano dispuser do seu livre arbítrio, pode-se ir tornando ou sucessivamente mais escravo ou mais livre (EE 23 e EE 234). O que caracteriza o ser humano é estar em processo em vista da liberdade plena dos filhos de Deus, já que infinitamente amados: “É para que sejamos verdadeiramente livres que Cristo nos libertou” (Gl 5, 1).

E podemos considerar ainda uma certa causalidade material. O ser humano tem a particularidade de ser a única criatura que é templo de Deus (EE 235). Consequentemente, Deus pode agir nele imediatamente, sem qualquer mediação (EE 15 e 236). Deus habita e trabalha no ser humano. A presença de Deus no ser humano e na história da humanidade é dinâmica: “O meu Pai trabalha continuamente, e eu também” (Jo 5, 17).

A presença de Deus no ser humano e na história da humanidade é dinâmica: “O meu Pai trabalha continuamente, e eu também” (Jo 5, 17).

É próprio do ser humano desenvolver progressivamente uma relação não mercantil nem interesseira (tipo causa efeito) mas, pelo contrário, uma relação pautada pela gratuidade. Esta relação inicia-se com um convite: o Chamamento do Rei Eternal (EE 91-109); pela respetiva correspondência: a Eleição (EE 169-189); e, finalmente, por uma existência pautada pelo amor divino: Contemplação para alcançar amor (EE 230-237). Os EE concluem com o seguinte pedido: “ [Senhor] dai-me o vosso amor e graça que esta me basta” (EE 234). Em S. Paulo a justificação com base na graça, fruto da entrega incondicional do Senhor, contrapõe-se à justificação com base nas obras farisaicas, assentes numa relação causa e efeito.

O objetivo dos Exercícios Espirituais é levar o ser humano a ser cada vez mais plenamente ele próprio, ora isto coincide com a vontade de Deus. Assim, o exercitante vai sendo conduzido a uma resposta sobre a sua própria identidade bem como à questão O que é o homem? E neste confronto pessoal com os diferentes caminhos e respostas possíveis, desencadeiam-se no exercitante moções ou movimento interiores de dois tipos: consolações e desolações. A vontade de Deus é sinalizada por estas moções. O coração fala-nos de Deus porque Deus nos fala ao coração.[3] É óbvio que estamos aqui perante um tipo de causalidade que não é a habitual. Há que saber ler esta linguagem das moções, nomeadamente recorrendo a um acompanhamento espiritual.

Segundo Santo Inácio, é exclusivo de Deus desencadear no ser humano “consolações sem causa precedente” (EE 330 e 336). Só Deus pode dar consolação sem causa. Nesta consolação sem causa está implícito o mistério pascal e o reino de Deus que nos é franqueado, de modo a sermos consolados por Deus na dor (EE 316) e a exercitarmo-nos no ofício de consolar perante a dor dos outros (EE 224 e 237). Por outro lado, a consolação espiritual (EE 316) tem nas virtudes teologais (esperança, fé e caridade) a mais completa expressão. De facto, as virtudes teologais são puro dom, inesperado e desmesurado, decorrente da vida em Deus. Progressivamente o ser humano vai-se compreendendo a si mesmo a partir da comunhão com Deus.

Por outro lado, a consolação espiritual (EE 316) tem nas virtudes teologais (esperança, fé e caridade) a mais completa expressão. De facto, as virtudes teologais são puro dom, inesperado e desmesurado, decorrente da vida em Deus. Progressivamente o ser humano vai-se compreendendo a si mesmo a partir da comunhão com Deus.

Nesta mudança de época em que vivemos, há um novo paradigma consignado nas encíclicas Laudato si’ e Fratelli tutti. É com base nos valores evangélicos que este paradigma visa ir transformando progressivamente o mundo em reino de Deus. Na espiritualidade inaciana estes valores a exercitar passam pela indiferença ou liberdade interior, pela vida simples ou modesta, por um resposta não violenta às injúrias, pela humildade, pela própria alegria, pelo ofício de consolar e o testemunho da misericórdia, e pela vida em comunidade antecipando parcialmente o reino de Deus.

Assim, tendo como base o estudo realizado pela Comissão Bíblica Pontifícia[4] na reflexão sobre O que é o homem?, conclui-se o seguinte: 1. O ser humano é criado por Deus a partir da terra à qual infundiu o sopro divino. Como consequência do “sopro divino” no homem, o ser humano não se esgota em si mesmo, mas é abertura a Deus. Desta conceção antropológica bíblica decorrem os outros capítulos deste estudo: 2. O ser humano no jardim: a tarefa do trabalho confiada ao homem e o respeito pela criação; 3. A família humana: o amor entre homem e mulher; o amor entre pais e filhos; o amor fraterno; 4. O ser humano na história: o homem sob a lei; obediência e transgressão; a intervenção de Deus na história dos pecadores. Progressivamente, o reino de Deus pautado pela justiça e a paz estender-se-ia à comunidade das nações.

Entregue exclusivamente a si mesmo, o ser humano acaba por se autodestruir, pois amputado e truncado do próprio Deus que o criou, o conserva na existência e o conduz ao longo de uma história de salvação em vista da liberdade plena. A relação com Deus liberta o ser humano e devolve-o à sua identidade mais autêntica. Nos EE, poderíamos resumi-lo do seguinte modo: a experiência pessoal de ter sido “misericordiado” (EE 61, 71 e 237) – arrancado à autodestruição resultante do fechamento em si mesmo – e “agradiciado” (EE 234) – a liberdade plena resultante da abertura à vida divina. Como consequência desta experiência brota espontaneamente no ser humano o testemunho da misericórdia e da graça em favor do mundo. Esse é o homem!

 

Referências

[1] Evandro Agazzi, nascido em Bérgamo a 23 de outubro de 1934, é um filósofo italiano cujas áreas de interesse são a filosofia da ciência, lógica matemática, ética, metafísica, filosofia da linguagem, antropologia filosófica e teoria dos sistemas.
[2] Giovanni Cucci SJ, “Scienza e spiritualità in dialogo, Per una antropologia integrale”, in La Civiltà Cattolica, 6/20 gennaio 2024.
[3] Papa Francisco, O coração fala-nos de Deus, A importância do discernimento para os dias de hoje, Editor: Apostolado da Oração, Braga 2023.
[4] Pontificia Commissione Biblica, Che cosa è l’uomo? (Sal 8, 5), Un itinerario di antropologia bíblica, Libreria Editrice Vaticana 2019.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.