Os dias que correm são particularmente efervescentes quando à presença do futebol nos media. Num período de particular concentração de competições, o nosso quotidiano comunicativo é habitado por um contínuo de comentários e notícias sobre esse jogo-desporto. Com frequência, os cientistas sociais olham para esse desporto e espetáculo como uma nova “religião popular”, na sua escala local e global. Algumas interpretações viram neste desporto uma nova forma de religião (“ópio”) do povo, perpetuando os valores do capitalismo. Entretanto, fala-se dos estádios como catedrais de betão, onde a multidão experimenta a fusão emocional, exprime o seu encantamento diante de seres excecionais, e se desfigura o adversário “ímpio”. Proliferam, também, as metáforas religiosas: o espaço separado, a ascese, o sacrifício, o milagre, a transgressão, a lectio matinal de jornais especializados, os relatos de feitos desportivos inigualáveis, as imagens devocionais, etc.
O uso destas metáforas não conduz à conclusão de que o futebol é uma religião que oferece uma salvação. Mas permite compreender a realidade complexa do desporto-espetáculo, enquanto dramatização de crenças que abrem o quotidiano a um certo tipo de transcendência. É assim que a glória desportiva, como representação da excelência humana, fabrica a heroicidade à medida do indivíduo comum, favorecendo o culto da excecionalidade, o espírito de competição, o gosto pelo desempenho espetacular. Embora a identificação com as vedetas desportivas seja frequentemente efémera, ela é suficiente para instituir um modelo de êxito social – mais eficaz, ainda, quando o herói desportivo partilha, com os seus apoiantes, a mesma origem social. O apoio dado às equipas vive da esperança na vitória da sua equipa, resultado que exprime o sucesso de uma escolha pessoal: no confronto dramático das equipas espera-se a confirmação da “nossa” superioridade sobre os “outros”.
Fala-se dos estádios como catedrais de betão, onde a multidão experimenta a fusão emocional, exprime o seu encantamento diante de seres excecionais, e se desfigura o adversário “ímpio”. Proliferam, também, as metáforas religiosas: o espaço separado, a ascese, o sacrifício, o milagre, a transgressão, a lectio matinal de jornais especializados, os relatos de feitos desportivos inigualáveis, as imagens devocionais, etc.
Talvez o futebol seja um sucedâneo da festa popular, ritual moderno que, medido por intervalos regulares e celebrado a horas fixas, congrega milhões de indivíduos em recintos ou diante de um ecrã. A multidão de fiéis participa intensamente imitando, exclamando, gritando, numa ritualização das emoções, onde se adensa a experiência de intensificação emocional.
O sucesso do futebol deve relacionar-se com o facto de este desporto ter uma particular relação com os paradoxos da modernidade. É um facto que este desporto-espetáculo narra o ideal igualitário, resolvendo imaginariamente a contradição entre a igualdade de princípio e a desigualdade de facto. A paixão pela igualdade ajuda a compreender a popularidade do futebol: valorizando a igualdade de oportunidades, o mérito individual, o êxito e a justa competição, o futebol traduz o imaginário democrático numa espécie de encenação do que “deveria ser a vida para cada um se ela fosse justa”. Este desporto traduz, assim, um modo de civilização – a civilização tecnológica – uma vez que a produção do corpo desportivo de alto rendimento está mais dependente da mediação tecnológica.
Talvez seja excessivo falar do futebol como “religião popular”. Mas é certo que esse espetáculo de massas dá corpo a um determinado ideal de sociedade, exprime de forma dramática o desejo dos indivíduos e aponta para algumas das feridas das nossas sociedades. É, portanto, um lugar que merece atenção, para compreendermos a sociedade em que vivemos. Há uma grande distância entre o humanismo próprio do imperativo «dar o melhor de si» e as lógicas de maximização do lucro no negócio desportivo. Mas é essa ambiguidade própria das ações humanas que devemos compreender, para agir.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.