Em época de greve dos professores às reuniões de avaliação vale a pena pensar sobre o que é ser professor, hoje, em Portugal. É uma reflexão difícil porque temos 150.000 professores em mais de 3.000 estabelecimentos de ensino. Logo, não há “o professor”, nem “os professores”, mas múltiplos e muito diferentes professores. Contudo, todos opinamos sobre “os professores”. Jornalistas, políticos, pais, alunos, o homem do café e até os próprios professores.
Em matéria de professores confundem-se duas realidades distintas, que parecem ser a mesma coisa mas não se tocam. Geralmente esta confusão resulta de pouca atenção, mas por vezes é uma confusão conveniente. Uma coisa é “o” professor; cada indivíduo concreto que, por vocação, acaso ou necessidade tem como função diária ensinar e ajudar a aprender. Chamemos-lhe o professor pessoa. Outra coisa são “os” professores; o conjunto de profissionais que têm em comum a formação inicial, a carreira e os agravos com o patrão (este texto é sobre os professores no sistema público estatal). Chamemos-lhe o professor operário.
O professor pessoa é um indivíduo de carne e osso, com sonhos e desafios, medos e inseguranças. Uns dão o seu melhor, outros apenas o suficiente. Uns lêem muito, outros muito pouco. Uns adoram o que fazem, outros detestam. Uns são profissionais de mão cheia, outros andam a apanhar bonés. Uns são estimados e respeitados pelos alunos e famílias, outros pelo contrário. E muitos são diferentes graus de tudo isto.
O professor operário é um tipo mais homogéneo. Aceita os ritos de socialização próprios da profissão (os mais velhos escolhem primeiro os horários, os mais novos não podem fazer ultrapassagens, somos todos iguais), afirma-se pelas lutas laborais da classe (nos corredores da escola e na mesa do café), é contra o ministro, mal remunerado, precisa de formação para fazer coisas novas e de mais tempo para preparar aulas melhores.
O professor pessoa vive na alma de cada um. O professor operário domina o corpo e impõe-se à alma. Nem que seja apenas exigindo-lhe silêncio. O professor pessoa sabe que tem razão em muitas das suas queixas e sente-se cansado e impotente para as resolver. Por isso deixa o professor operário fazer a luta em seu nome. Pode ser que algo mude… mesmo sabendo que nada mudará. Pelo menos nada de significativo. O professor operário vive do problema; não da solução.
E o problema é um e bem identificado: o Estatuto da Carreira Docente.
O Estatuto da Carreira Docente é o diploma legal que define quem pode ser professor, como são contratados os professores e como é a sua carreira. Este diploma foi criado num Portugal que já não existe. Era um Portugal que despertava para a democracia, em que a maioria dos jovens até aos 18 anos estava fora da escola, em que a grande maioria dos adultos tinha muito poucas habilitações e em que da escola se esperava que desse a matéria tal como estava determinado pelo Ministério da Educação. Já ouço muitos leitores a barafustar que não era nada assim, que tiveram grandes professores no seu liceu, que a escola era um local de saber, respeito e ordem. Pois; o que o leitor não está a equacionar é que quando andou no liceu só havia liceus nas capitais de distrito e só 10% dos jovens com idade para andar no liceu lá estavam. A sua experiência de liceu pertence ao tal Portugal que, felizmente, já não existe.
O Estatuto quando foi criado tinha boas intenções e servia bem as necessidades do país. Mas o país mudou, as necessidades também e o Estatuto ficou igual. Na altura, havia muitas crianças por escolarizar e poucos adultos que os pudessem ensinar. Por isso foram criadas muitas regras para incentivar os poucos adultos com cursos superiores a virem para o ensino. E nenhuma regra para defender os interesses dos alunos. O Estatuto da Carreira Docente criou o professor operário e este tomou conta do Estatuto. Alimentam-se mutuamente, afastando cada vez mais o exercício da profissão das reais necessidades dos alunos e do País. Não se percebe que os mais de 120.000 docentes sejam contratados através de um concurso único central.
Não se compreende que nenhum ano lectivo arranque com os professores nas escolas. Não se compreende que qualquer professor possa, em qualquer ano, decidir mudar de escola. Não se compreende que haja alunos do ensino primário que mudam de professor duas ou três vezes durante o ano lectivo. Não se compreende que as escolas não tenham uma palavra a dizer quando se trata de recrutar os seus professores. Não se compreende que os maus professores continuem no ativo ano após ano. Não se compreende que os professores sejam tratados todos por igual independentemente do seu mérito. Não se compreende que professores excelentes ganhem miseravelmente. Não se compreende que ninguém se rale realmente com tudo isto. Não se compreende que o direito à greve, direito fundamental conquistado por tantos trabalhadores vítimas de exploração seja usado, contra os alunos, fora de situações de exploração laboral.
O professor operário até pode ter razão quando tenta recuperar os 9 anos, 4 meses e 2 dias em que a sua carreira foi congelada. Mas essa não é a questão; nem a solução. É preciso recomeçar de novo e encontrar um novo Estatuto da Carreira Docente que crie a estabilidade e justiça de que o professor pessoa precisa para poder viver em paz. E essa paz é o primeiro passo para que todos tenham a boa educação que merecem.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.