O poder da pena

Os céticos não acreditam na eficácia destas ações. Pensam que não adianta tentar, que nada será mudado. Mas hoje sabemos bem que não é assim.

Todos os dias jornais, revistas, rádios e televisões, bombardeiam-nos com notícias terríveis, que mostram tudo o de mal e pérfido o ser humano consegue fazer. Mas onde está o destaque para os mais belos atos de amor altruísta?

Como adolescente de 14 anos fiquei assombrada quando percebi que havia pessoas presas na China e condenadas a 50 anos de prisão por terem escrito um poema. Tentei imaginar esses belos poetas numa exígua cela de prisão, escura e fria. Conheci depois o caso de um sindicalista de Marrocos condenado a nove anos de prisão. Mohammed Nadrani ficava vendado e com as mãos amarradas, tendo direito a uma pequena pausa diária, em que as mãos e os olhos eram libertos. Imaginei Nadrani a riscar o chão com giz, forçando os olhos e as mãos a movimentos vedados nas vinte e três horas anteriores. Mas quando cheguei, com surpresa e incredulidade, à notícia de uma criança de dois anos presa por subversão, nem consegui imaginar. Li sobre organizações que ajudavam pessoas assim. Pensei que me tinha de juntar a elas. Esse foi o meu momento zero. O momento que me impeliu à ação.

Há uns anos atrás, o mundo ouviu falar de Amina Lawal. Amina, uma jovem nigeriana, encontrava-se grávida quando se divorciou do seu marido e por isso (de acordo com a lei sharia) foi condenada a uma sentença de morte por adultério: seria enterrada até ficar apenas com a cabeça de fora e apedrejada até à morte. Num ato de clemência, ou assim o entendia, o juiz decidiu deixar que a gravidez de Amina chegasse ao termo e lhe fosse dado tempo para amamentar a criança, antes da execução da sentença. Este caso chocou o mundo. A imagem da Amina com a sua pequena e frágil criança, cuja mãe seria ceifada de forma tão brutal, foi o momento zero de muitas pessoas. Milhões de pedidos de anulação da sentença chegaram ao governo nigeriano. Pessoas de todas as idades e de todas as regiões de mundo redigiram apelos urgentes a pedir que Amina pudesse viver uma vida longa e feliz. A sentença acabou por ser anulada.

Infelizmente, o caso da Amina não era único. Nem no seu próprio país era único. Mas por uma série de circunstâncias, que incluíam a poderosa ferramenta de dar um nome, rosto e história a uma violação atroz, Amina conseguiu mobilizar milhões de pessoas em torno da sua salvação. Outros casos, até com maior projeção mediática do que o da Amina, poderiam ser citados. Basta recordar o caso da Malala, um caso chocante, que quase terminava na tragédia de uma ativista do direito à educação ser baleada por querer que todos pudessem ter acesso à escola. Malala e Amina mobilizaram milhões porque para muitos era impensável o que tinham sofrido e os desafios que ainda enfrentavam. A inação não era uma opção.

Os céticos não acreditam na eficácia destas ações. Pensam que não adianta tentar, que nada será mudado. Mas hoje sabemos bem que não é assim. No século XX, pessoas munidas de papel e caneta assinavam apelos urgentes em prol de milhares de pessoas presas injustamente, torturadas e maltratadas. Casos houve em que todo o sistema dos correios ficou bloqueado com tantos apelos. Com a bondade de um guarda prisional ou a astúcia de um advogado, alguns desses apelos chegavam até esses prisioneiros, que contemplavam maravilhados o seu nome numa petição subscrita por milhares de pessoas. Recebiam também notas manuscritas de alento e desenhos de crianças que tentavam animar os seus dias sombrios. O impacto positivo era infinito. No século XXI, os desenhos e notas foram substituídos por mecanismos digitais. Mas continuamos a encher caixas de correio (eletrónico) e a mobilizar milhões de pessoas, agora com o apoio das redes sociais. Foquemo-nos hoje no poder do seu uso benigno, e não no de destilar ódio e promover a violência, para o qual tanto são usadas.

Mas acredito que as boas notícias podem ser tanto ou mais mobilizadoras. É importante evidenciar que as ações funcionam, que escrever um email ou assinar uma petição funciona.

Sabemos, assim, que os instrumentos se vergam às vontades, e que poderíamos dedicar muito mais tempo a enaltecer o que de bom se faz diariamente. Poderíamos falar dos casos de sucesso, dos gestos extraordinários e muitas vezes simples, que fazem com que a vida de tantas pessoas assuma a dignidade que merece.

Será que é de conhecimento geral que o mundo assiste a uma diminuição dos países em que é aplicada a pena de morte? Será que é sabido que todos os meses são aprovadas leis, um pouco por todo o mundo, que concedem mais direitos a grupos marginalizados e minoritários? Será que é sabido que quando os apelos chegam às autoridades, as condições de prisão melhoram em muitos casos, e as pessoas têm direito a uma pausa nas torturas e atrocidades a que são submetidas? Será que que é sabido que centenas de prisioneiros de consciência, pessoas que nunca usaram nem advogaram a violência e que são presas pela sua opinião, credo, religião ou cor da pele, são libertadas todos os anos? Será que se ouviu falar do caso de Germain Rukuki, um defensor de direitos humanos do Burundi, que foi libertado da prisão em 2021? Germain tinha sido condenado a 32 anos de prisão, com base em acusações infundadas. Quatro anos depois e após mais de 400.000 apelos à sua libertação, foi libertado e poderá agora conhecer o seu filho, nascido pouco depois da sua detenção. Imagino o seu filho nos seus braços, a ler uma história, a sentir o cheiro da sua pele. Imagino a situação e sorrio. Este também pode ser um momento zero.

Não há dúvida de que o choque funciona. Que todos os que leram em cima que havia crianças presas com dois anos se sentiram ultrajados e compelidos à ação. Mas acredito que as boas notícias podem ser tanto ou mais mobilizadoras. É importante evidenciar que as ações funcionam, que escrever um email ou assinar uma petição funciona. É importante sublinhar que fazer advocacia social e exigir mudança de leis funciona, que mobilizar grupos e comunidades funciona, que fazer ações preventivas funciona.

Enquanto continuarmos a privilegiar as más notícias, a negligenciar e relegar para segundo plano as soluções, a deixar para nota de rodapé as boas ações e os seus impactos, estamos a ajudar os torcionários. Estamos a impedir milhões de pessoas de sentirem que a sua ação fará a diferença. Estamos a impedi-las de perceber o poder da pena, agora simbolicamente representada nos teclados dos computadores ou nas teclas dos telefones, de investir na prevenção, aproximando o mundo daquela utopia maravilhosa que todos os ativistas de direitos humanos imaginam: o mundo em que a todos são reconhecidos a dignidade e os direitos.

Dos milhões mobilizados, aos pequenos atos diários de bondade, há histórias de infinita beleza. Mostremos essas histórias ao mundo e criaremos o efeito dominó de muitos novos momentos zero, com ativistas e defensores de direitos humanos a nascerem por todo o mundo. Pessoas para as quais a inatividade nunca será opção. Imagino esse mundo, mas agora não só eu que sorrio.

Fotografia de  Hanna Zhyhar – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.