Aproximamo-nos do final de mais um ano. Nestes últimos dias, sempre foi usual fazer memória de tudo o que aconteceu. Como 2020 foi particularmente exigente, pode haver a tentação de investir apenas em projetar 2021, estabelecendo já metas e propósitos. No entanto, acredito que seria um erro não ter um olhar ponderado sobre o ano que passou. A verdade é que, se houve adversidades, também houve conquistas.
Na Escola, experimentámos, de forma inédita, a dificuldade de levar a nossa missão à distância. Vimos as diferentes divisões das casas dos nossos alunos serem transformadas em salas de aulas. Testemunhámos os esforços de pais e irmãos, que se desdobraram para acompanhar os alunos. Demos, em poucas semanas, passos muito importantes.
Acima de tudo, pudemos confirmar que não é possível replicar em casa aquilo que acontece todos os dias nas nossas escolas. Mas também percebemos que a Escola não se esgota dentro dos muros que delimitam o espaço físico a que dá nome.
É bastante visível que a situação que vivemos marcou e marca os alunos que acompanho. Por isso, comecei a pensar na bagagem com que chegam ao final deste ano depois de tudo o que aconteceu. De que forma é que a bagagem que os alunos trazem integra ou está relacionada com o currículo, de que tanto se fala em educação?
Ainda hoje não existe uma única definição de currículo, ainda que se concorde que está intimamente relacionado com a experiência de aprendizagem que a Escola proporciona. Os especialistas consideram ainda diferentes tipos de currículo. Podemos falar de currículo formal, informal, oculto… Dei por mim a pensar se toda esta experiência faz parte do currículo que este ano foi proposto aos alunos – e não só àqueles que acompanho. Aí, deparei-me com muitas perguntas, que me parecem que podem fazer sentido para professores e alunos. O que é que propusemos? O que é que descobrimos? O que é que aprendemos? O que é que foi mais importante? O que é que tivemos de deixar cair? O que é tudo isto mobilizou e desenvolveu em nós?
Esta situação deixa uma marca na minha vida que vai para além do meu trabalho. Por isso, de forma abusiva, bem sei, acabei por pensar sobre o currículo num âmbito mais alargado: para além da Escola. No fundo, depois destes meses, o que é que aprendi? O que é que mudou em mim? Como é que cresci? Afinal… O que é que consta no “currículo” do meu ano de 2020?
Acima de tudo, pudemos confirmar que não é possível replicar em casa aquilo que acontece todos os dias nas nossas escolas. Mas também percebemos que a Escola não se esgota dentro dos muros que delimitam o espaço físico a que dá nome.
Percebi que este “currículo” está longe de estar vazio: trago muitas coisas! Seria um erro considerar que 2020 foi um ano mau, que se tratou de tempo perdido e que o melhor será mesmo esquecê-lo. Pude tomar consciência da forma como olho para a minha vida e daquilo que sinto necessidade de mudar.
Adaptar repentinamente o que faço ajudou-me a reconhecer limitações e a perceber o que é mais importante para mim. Querer cuidar daqueles que sempre cuidaram de mim fez-me olhar para a forma como defino e concretizo as minhas prioridades. Testemunhar bem de perto passos importantes dados com fidelidade e coerência fez-me pensar na forma como defendo e vivo de acordo com as minhas convicções. Ouvir aquilo que diariamente acontece e se diz em tempo de pandemia fez-me refletir sobre a minha disposição e o modo como ponho ao serviço o que tenho e o que sou.
Não tenho dúvidas de que não o fiz sozinha. Quem foram, então, os “professores” deste “currículo” especial? Percebi que tenho pessoas na minha vida que, por razões tão diferentes, de forma mais ou menos explícita, mais ou menos consciente, me ajudam a perceber que, ainda que muitas vezes não tenha parecido, recebi muitas Graças em 2020. Sei que pode soar cor de rosa e simplista, mas não foi um processo fácil. Acredito, no entanto, que será um processo fecundo. Estes frutos virão, certamente, na companhia destes e de outros “professores” que o ano de 2021 trará. Para isso, mais do que identificar e nomear, torna-se essencial cuidar destas pessoas e da forma como nos acompanham – seja mais ou menos de perto, da maneira a que sempre estivemos habituados ou de outras que temos por descobrir.
No Evangelho que ouvimos neste domingo, São Lucas relata o momento em que Maria e José levaram Jesus ao templo. Neste excerto, a minha atenção recaiu de forma especial sobre o encontro com Simeão. Quando Jesus lhe é apresentado, Simeão não foi capaz de conter a Alegria que sentiu: recebe-O no seu colo e até deixa Maria e José admirados com o que diz e com a forma como o diz. Ali, de forma evidente, Simeão percebe que tem diante de si o essencial. É isso que lhe traz luz.
Acredito que esta luz pode vir depois deste olhar ponderado para 2020. Para isso, não diria que é preciso construir um “currículo” ou contratar “professores”. Penso que bastará a liberdade de olhar, com simplicidade e sem preconceitos, para o que vivemos. Depois disso, poderemos despedir-nos de 2020:
“Agora, Senhor, segundo a vossa palavra, podes deixar seguir o ano de 2020, porque os meus olhos já souberam reconhecer a Graça que com ele nos trouxeste.”
Façamo-lo na certeza de que, independentemente do que trouxer, 2021 chegará com novas oportunidades de reconhecer a Graça que nos é dada. Como? Parece-me que vale a pena aprender a ter o olhar de Simeão.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.