«Páscoa de páscoas
que semeaste nas lágrimas
o pão que doira
as manhãs da alegria
do teu passar»
José Augusto Mourão
A vivência da Páscoa cristã atraiu a minha reflexão para esse acontecimento que, de forma tão singular, marcou uma parte da história humana e continua a assinalar a vida de tantos homens e mulheres: a paixão e morte de Jesus. Basta ter em conta a multiplicação, com vagas recorrentes, de uma atividade editorial que, a partir de quadrantes diversos, dá conta da demanda de uma derradeira reposta acerca do enigma de Jesus. Aliás, com frequência, os escaparates das grandes livrarias dão testemunho de um fenómeno de proliferação do religioso e do espiritual. Fragilizada a articulação entre crer e pertencer, os universos religiosos (talvez pluriversos) tornaram-se como que um stock simbólico disponível, cujas fronteiras não têm guarda. Tais circunstâncias permitem que interesses diversos recuperem, para as sociedades da tecnociência, o apelo sedutor do enigma religioso, procurando os ingredientes que permitam suportar os custos da modernidade avançada. Nesse contexto, também a figura de Jesus se descobre em itinerários contrastantes, entre a releitura devocional e a demanda da verdadeira história de Jesus, entre a descoberta de um Jesus “alternativo” e a apresentação do Jesus celebrado e confessado eclesialmente. Nesse intervalo, deparamo-nos com processos vários de construção de Jesus, que não são necessariamente contra as Igrejas, mas são delineados fora delas.
Esta situação pode ser propícia a uma redescoberta da singularidade cristã, uma vez que, nesse contexto de proliferação e desregulação, as Igrejas são convocadas para evocar a memória de Jesus que transportam. Quem frequenta os textos clássicos das culturas e as narrativas mitológicas que falam da fundação das cidades, das etnias, sabe que são frequentes as descrições de processos semelhantes aos de Jesus: determinado grupo faz a experiência de uma profunda crise que ameaça a subsistência do grupo; na ânsia de encontrar uma explicação e uma saída, descobre em alguém a culpa de todos os males, cuja morte ou expulsão será vista como redentora. É neste contexto que terão nascido muitas representações do sagrado social, nas quais a relação com o divino passa sempre por acontecimentos violentos. Assim se acreditou que para reconciliar homens e Deuses era necessário que alguém pagasse, um “bode expiatório”, requisito para renovação da paz entre o céu e a terra. A história das religiões está, assim, cheia destas vítimas que alimentam esta lógica da retribuição.
As vítimas carregam sempre uma culpa hedionda. É que esta história é-nos sempre contada por quem perseguiu. Ora quanto mais desfiguradas as vítimas, mais facilmente são expulsas do território dos vivos. Mas o que aconteceria se fosse dada a palavra à vítima? Se a história fosse uma narrativa a partir do olhar da vítima? Ou seja, se a vítima aparecesse, de facto, como “vítima” (inocente), no sentido moderno do termo. Quando lemos os textos cristãos, percebemos que as primeiras gerações de seguidores de Jesus tiveram de ganhar esse descomunal desafio: anunciar um messias crucificado. As tentativas de explicação passaram pelo recurso à ideia de sacrifício. No entanto, uma leitura atenta dos Evangelhos descobre que o recurso a essa leitura sacrificial deve confrontar-se com outras dimensões do testemunho evangélico.
Interessa sublinhar que, ao contrário de certos mitos, nos Evangelhos cristãos, Deus está do lado da vítima para confirmar a sua inocência, e não do lado de quem condena, para sustentar a coesão do grupo.
Interessa sublinhar que, ao contrário de certos mitos, nos Evangelhos cristãos, Deus está do lado da vítima para confirmar a sua inocência, e não do lado de quem condena, para sustentar a coesão do grupo. Os perseguidores designam a vítima para bem da nação, mas os Evangelhos dessacralizam essa violência retirando-a da esfera de Deus e devolvendo-a à comunidade humana. Essa confissão firme da inocência de Jesus está bem patente na citação de dois fragmentos do Antigo Testamento: “Odiaram-me sem motivo”, uma citação do Salmo 35 (Jo 15, 25); “A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular”, citação do Salmo 118 (Lc 20, 17). Não são duas citações laterais. Enquanto citações, reinterpretam a autoridade de uma tradição, exprimindo a recusa de qualquer causalidade mágica para a violência da Paixão, e desmascaram as acusações estereotipadas que querem fazer de Jesus a vítima de uma morte necessária.
Quando o texto evangélico introduz, neste processo, tais citações, visa-se destituir a acusação de causa, pondo a nu a inocência da vítima. Se é inocente, a violência não é “necessária”. Assim, Jesus surge, na memória cristã, como revelador de uma nova possibilidade de relação com Deus sem os mecanismos da violência intermediária (“A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular”). Por isso mesmo, o testemunho que Jesus dá de si próprio é o sinal de Jonas, vítima coletiva, designada em favor da pacificação social e expressão da equivalência antiga entre favor de Deus e sucesso mundano. Jesus e a sua morte são o próprio sinal de Jonas. O mesmo é dizer que Jesus é uma vítima, mas vítima inocente, reveladora do Deus das vítimas.
Penso que um dos contributos mais significativos das tradições cristãs para o curso da nossa história se traduziu na progressiva deslocação das vítimas para o centro da cultura. As instituições continuam a fazer as suas vítimas, em nome de um bem coletivo maior – encontramos muitos exemplos na economia, na política e na religião. Os atentados do Sri Lanka recordam-nos, dramaticamente, que os recursos da engrenagem da violência sacral continuam disponíveis. Mas é certo que, na cena pública das sociedades democráticas, quando se dá visibilidade ao olhar da vítima, “desoculta-se” a violência, agora reconhecida como intolerável.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.