O martírio da educação

No dia de S. João de Brito, inspirados pela sua vida, contemplemos a vocação do educador cristão e procuremos as raízes da sua vocação, através das palavras do Papa Francisco.

A escola é um verdadeiro martírio: para os professores, com burocracias infindáveis e desafios constantes; para os alunos, com avaliações contínuas e relações sociais desafiadoras; para os pais, com logísticas exigentes e contínuas preocupações. Todavia, neste dia em que celebramos o único santo jesuíta português, que foi martirizado duas vezes, gostaria de recuperar o significado etimológico da palavra martírio (em grego: martyrion): ação de testemunhar.

Há precisamente um mês, o Papa Francisco, num encontro com professores, gestores, educadores, formadores e pais de escolas católicas italianas, disse: “Um bom professor é um homem ou uma mulher de esperança, porque se dedica com confiança e paciência a um projeto de crescimento humano. A sua esperança não é ingénua, está enraizada na realidade, sustentada pela convicção de que cada esforço educativo tem valor e que cada pessoa tem uma dignidade e uma vocação que merecem ser cultivadas.”

Há 332 anos, em Oriur, neste mesmo dia, S. João de Brito era decapitado por ensinar a lei de Deus. Escrevia, na véspera, sobre o olhar atento dos verdugos: “A culpa de que me acusam vem de ser que ensino a lei de Deus Nosso Senhor, e que de nenhuma maneira hão-de ser adorados os ídolos. Quando a culpa é virtude, o padecer é glória.”

Nas raízes da vocação de educar, o testemunho não é um formalismo teatral nem um vídeo tutorial do Tik Tok, mas aceitar padecer com generosidade, dando a vida que recebi para que o outro tenha vida. Inspirado pelo contagiante exemplo da vida de S. João de Brito e pelas palavras do Papa Francisco, gostaria de propor três fins que permitam ao educador não perder o horizonte nem a esperança, discernindo em cada tempo e lugar os meios de que deve usar para atingir esses mesmos fins.

Nas raízes da vocação de educar, o testemunho não é um formalismo teatral nem um vídeo tutorial do Tik Tok, mas aceitar padecer com generosidade, dando a vida que recebi para que o outro tenha vida.

1. Educar o desejo do mais: viver da sede e não da gratificação

“A esperança não desilude. O otimismo desilude, mas a esperança não desilude. Uma esperança que ultrapassa todos os desejos humanos, porque abre as mentes e os corações à vida e à beleza eterna.” (Papa Francisco)

Durante a sua infância, na corte, o pequeno João, batizado de “apostolinho”, após a milagrosa cura operada por interceção de S. Francisco Xavier, foi descobrindo o desejo de mais. Não lhe bastava viver para o imediato nem para as aprendizagens essenciais, sonhava em ir para a Índia, pondo em causa a sua segurança, para lá do protecionismo dos palácios e da condição social. Educar é ajudar cada um a descobrir a sede do mais, distanciando-o do desejo da busca de um resultado. Vivemos na vertigem do imediato e na ditadura do útil, como se todas as coisas e acontecimentos fossem decisivos, canalizando todo o nosso desejo para a superficialidade pavloviana da gratificação. Às vezes oiço os alunos dizerem: – “Vou concentrar-me e estudar 30 minutos, para depois poder descansar entretido no Tik Tok”. Ter um horizonte para lá dos muros da escola ou do ecrã do meu telemóvel, ajuda-me a contemplar a existência como um processo criativo de libertação do desejo. Fomos criados para o mais, mas se não formos pequenos, não poderemos educar para a sede, ajudando os alunos a viver agradecidos. O reforço positivo que somos chamados a praticar com os alunos não se pode transformar numa espécie de protecionismo paternalista, mas deverá ajudar cada pessoa a descobrir a sede da esperança e o desejo do serviço.

2. Educar para a atenção e o cuidado: ver no outro um irmão

“A proximidade. É o Senhor que, como um professor que entra no mundo dos seus alunos, escolhe viver entre os homens para ensinar através da linguagem da vida e do amor. Jesus nasceu numa condição de pobreza e simplicidade: isto chama-nos a uma pedagogia que valoriza o essencial e coloca no centro a humildade, a gratuidade e o acolhimento.” (Papa Francisco)

Havia vários métodos possíveis de missionação e de evangelização, mas João de Brito escolheu a inculturação, assumindo as vestes e os costumes daqueles a quem Cristo o enviou a servir. Deixou a batina, aprendeu a língua local e a alimentar-se do que a terra lhe dava, deixou crescer o cabelo, fez-se próximo dos mais pobres e humildes para lhes levar a esperança. Os seus olhos estavam fixos em Jesus e, apesar das diferenças físicas e culturais, e das dificuldades próprias do seu tempo, reconhecia no outro um irmão. Para ser próximo não temos que ser infantis ou fazer o que os alunos fazem, condenados ao síndrome do Peter Pan. Educar com proximidade exige do educador uma atenção e cuidado que ajudem o aluno a contemplar os erros como uma possibilidade de crescer e a reconhecer no outro um irmão. Apesar das diferenças que nos separam, o outro não é um rival, alguém com quem compito pelo êxito ou boas notas, mas uma pessoa humana de igual dignidade, que merece respeito e justiça. Só o olhar fixo em Jesus nos pode libertar da espiral trituradora dos afazeres que se sucedem segmentando a velocidade voraz do tempo, inquinando as relações de preconceitos e futilidades. Educar é semear intencionalmente a semente da verdade, evitando o proselitismo e a ideologia.

Só o olhar fixo em Jesus nos pode libertar da espiral trituradora dos afazeres que se sucedem segmentando a velocidade voraz do tempo, inquinando as relações de preconceitos e futilidades. Educar é semear intencionalmente a semente da verdade, evitando o proselitismo e a ideologia.

3. Educar para a coragem e a coerência: ser exemplo e cidadão comprometido

“Sois chamados a desenvolver e a transmitir uma nova cultura, baseada no encontro entre gerações, na inclusão, no discernimento do verdadeiro, do bom e do belo; uma cultura de responsabilidade, pessoal e coletiva, para enfrentar os desafios globais como as crises ambientais, sociais e económicas, e o grande desafio da paz.” (Papa Francisco)

João de Brito foi corajoso e coerente. Depois de ter sobrevivido a um primeiro martírio, voltou a Portugal, percorreu o país, dançou com vestes exóticas no Porto e, apesar dos insistentes pedidos do Rei, seu amigo, e da influência da sua mãe, voltou para a Índia. O santo português arriscou ir até às fronteiras do mundo para propor uma nova cultura. Educar o cidadão do futuro não é só responder aos problemas atuais, mas ajudar cada aluno e aluna a descobrir a humanidade oculta que há em si e no outro. As raízes da nossa humanidade nutrem-se de bondade, de justiça, de liberdade, e só crescem se alimentarem o bem comum. Educar é dar testemunho, por gestos e palavras, da humanidade mais genuína que nos habita. O educador não é neutro ou indiferente, mas através do seu testemunho abre horizontes, ensinando a pensar e a fazer o bem.

Proliferam as perceções sobre a forma como os professores devem exercer a sua profissão: influencer, designer, facilitador, arquiteto, moderador, treinador, etc. Todavia, tal como o martírio não faz o santo, assim também a sala de aula não faz o professor. Mais do que ser profissionais do sistema de ensino, como educadores cristãos, somos chamados a dar testemunho da humanidade e divindade de Cristo, isto é, a ser mártires, dando a vida, com total liberdade e consciência, por um bem maior: a transformação do mundo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.