Gostava de começar por contar a história deste artigo. Nasceu da vontade de partilhar a leitura de um livro que tem um título muitíssimo curioso: L´art de décevoir ses parents, escrito pelo jesuíta Michael Bordt e publicado em 2018 pela FIRST Éditions. Depois de o ter lido e pensando no artigo que me esperava, perguntava-me se este poderia ser o tema. Afinal, o que tem este tema que ver com justiça, secção para a qual escrevo? A resposta é ‘sim’, tem tudo que ver com justiça. O livro não poderia ser mais indicado para falar de relações mais justas: comigo, com os outros e com o mundo.
Uma das abordagens principais da obra prende-se com o aprender a lidar com as desilusões, com as que experienciamos, mas também com as que causamos nos outros e, em particular, nos nossos pais. O livro reforça a importância da tomada de consciência de que crescer é não ter medo de desiludir, é o preço de sermos verdadeiros e fiéis a nós mesmos, mesmo sabendo que isso pode desiludir os que amamos.
Além disso, Michael Bordt mostra-nos o lado bom da desilusão. No seu livro, esta revela-se como uma poderosa ferramenta tanto para o autoconhecimento, como para um melhor entendimento dos outros e do mundo e, por isso, para vivermos relações mais justas.
Uma forma negativa de entender a experiência da desilusão é centrarmo-nos no fim da história.
A desilusão como chave de leitura do nosso desejo
Ao terminar a leitura do livro de Bordt, senti-me satisfeita, pois, afinal, a desilusão é a história de um desejo. A nossa vida está repleta destas pequenas histórias de desejos. Umas com finais felizes, outras nem tanto.
Uma forma negativa de entender a experiência da desilusão é centrarmo-nos no fim da história. A proposta de Bordt é precisamente o contrário, que olhemos para o início da história, para o que nos “iludiu”, ou seja, para o que nos entusiasmou, para o que desejávamos que acontecesse. À semelhança da palavra espanhola ilusión. Ao contrário da palavra portuguesa ilusão, que remete para a palavra engano, ilusión, em espanhol, tem uma conotação positiva, pois é utilizada como sinónimo de entusiasmo.
O lado bom da desilusão é que esta põe a nu os nossos desejos mais profundos. A desilusão é, então, uma boa chave de leitura para conhecermos o que realmente nos motiva, ainda que disso não tenhamos consciência. Pois, se a cabeça pode ser enganadora, o coração é inequívoco.
A desilusão como chave de leitura da realidade do outro
Outra ideia forte do livro é a de que “toda a desilusão é uma libertação”. A libertação da perceção errada que temos sobre a realidade do outro e do mundo que nos rodeia, a qual é influenciada pelos nossos desejos e medos. Como na conhecida afirmação de David Lynch – “the world is as you are”.
Por esta razão, Bordt mostra como “somos por vezes incapazes de avaliar os outros com o seu justo valor porque temos um interesse enorme que ele corresponda às nossas expectativas”. E, por isso, “uma aproximação construtiva às nossas desilusões depende da nossa disposição para aprender coisas sobre a realidade, sobre a verdadeira natureza dos outros e do mundo”. Como dizia também o Papa Francisco, “a realidade é superior à ideia”.
Outra ideia forte do livro é a de que “toda a desilusão é uma libertação”. A libertação da perceção errada que temos sobre a realidade do outro e do mundo que nos rodeia, a qual é influenciada pelos nossos desejos e medos.
A desilusão como chave de leitura do mundo
Se a forma como cada pessoa vê a realidade é influenciada pelos seus próprios desejos e medos, então juntemos os desejos e medos de 7,6 mil milhões de pessoas e teremos uma salada mista de diferentes realidades. Diferentes desejos, diversas realidades. Diferentes medos, inúmeras realidades.
A justiça procura dar o mais adequado a cada pessoa, a cada situação. No entanto, a definição do que é o mais adequado dependerá da forma como vemos a realidade e, como vimos, esta assumirá diferentes formas. Ter consciência disto é importante para compreendermos que teremos, inevitavelmente, diferentes visões sobre o que é justo, mais adequado, para mim ou para o outro. Como vimos na proposta do Exame de consciência para averiguar o meu grau de dialogicidade, “salvar a proposição do outro” torna-se então um passo necessário no diálogo.
Por tudo isto, o livro de Bordt faz-nos progredir na arte de bem viver as desilusões, ajudando-nos a saber interpretá-las. Enfrentar as nossas desilusões é inevitavelmente doloroso, pelo que requer disposição interior. Mas é assim que podemos caminhar de forma a nos tornarmos cada vez mais na pessoa que somos chamados a ser.
Fotografia de Margarida Alvim
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.