O exemplo do Senhor Germain em tempos de “redes sociais”

O ensino tem, sim, uma importância emancipadora, que, sendo única, não se pode ignorar, relativizar ou desvirtuar; e os professores, se o são de verdade, têm de assumir o dever de educar que lhe cabe.

19 de Novembro de 1957

Querido Senhor Germain,

Deixei que o ruído que me rodeou nestes dias diminuísse antes de lhe falar um pouco do fundo do meu coração. Acabam de me conceder uma grande honra, que não procurei nem solicitei. Mas quando recebi a notícia, o meu primeiro pensamento, depois da minha mãe, foi para o senhor. Sem si, sem a mão afectuosa que estendeu ao pobre garoto que eu era, sem os seus ensinamentos e exemplo, nada disso teria acontecido. Não imagino um mundo com esta espécie de honra, mas constitui uma ocasião para lhe dizer o que foi, e será sempre para mim, e para lhe assegurar que os seus esforços, o seu trabalho e o seu coração generoso, que sempre fazia valer, ainda se encontram vivos num dos seus pequenos pupilos que, apesar da idade, não deixou de ser um reconhecido aluno.

Abraço-o com todas as minhas forças.

Albert Camus

 

Talvez o leitor já conheça a comovente carta que acima transcrevi: enviada pelo franco-argelino que a assina ao seu professor da primária, depois de, aos quarenta e poucos anos, ter recebido o Prémio Nobel da Literatura. Ela está em livros, jornais e blogues, ganha existência própria, desvincula-se da obra em que Camus decidiu publicá-la – “O primeiro homem” –, que lhe é póstuma.

Face à tendência que ressurge de desconsiderar o professor, de reduzi-lo a um técnico-executor, a um submisso burocrata, a dita carta tem-se tornado uma espécie de cântico sobre o sentido de educar e, de modo particular, de educar na escola. Um cântico que se espera poder tocar consciências alheadas desse sentido profundo de constituição da maior humanidade possível em cada pessoa.

A força que tem ganhado é, em muito, devida a intelectuais como Fernando Savater e Nuccio Ordine, por retomarem, com frequência, o exemplo de persistência e dignidade que é o Senhor Germain. Ordine lê “a belíssima carta” aos seus estudantes e eu passei a fazer o mesmo, na esperança de que aquelas breves palavras levem a pensar além dos discursos que traçam o destino dos que vão à escola para aprender, em moldes de evidente eficácia, sucesso material e social, e individualismo selvagem.

Por as saber quase de cor, foi delas que me lembrei quanto me chegou às mãos um recente artigo das jornalistas Isabel Leiria e Joana Pereira Bastos sobre a desconfiança que paira no ar em relação ao professor, o controlo de proximidade que se exerce sobre ele, os juízos devastadores que sobre ele recaem[1]. A isso irei mais adiante; antes, recupero a “graça do encontro”, na expressão de George Gusdorf[2], o “milagre do ensino”, na expressão de Nuccio Ordine[3], que levou Camus até onde sabemos.

Entrou na escola, mas o que se poderia esperar de tão limitada condição? À pergunta, o Senhor Germain, se é que a colocou, ter-se-á negado a responder à partida.

Situemo-nos em 1918, num bairro argelino onde o trabalho de sobrevivência – parafraseando Soeiro Pereira Gomes, na dedicatória de “Esteiros” –, nega aos filhos dos homens a possibilidade de serem meninos. Aí cresceu Albert, sem recordação do pai, soldado francês morto na Primeira Guerra Mundial; acarinhado por uma mãe frágil e iletrada, que ganhava a vida com trabalhos domésticos; orientado por um tio tanoeiro, cujo ofício dizia querer seguir. O irmão mais velho e a avó, estrutura da família, completavam o seu mundo de esquecidos e deserdados. Entrou na escola, mas o que se poderia esperar de tão limitada condição? À pergunta, o Senhor Germain, se é que a colocou, ter-se-á negado a responder à partida.

Vendo a progressão do “pequeno”, insistia com a mãe e com a avó para que o deixassem apresentar-se ao exame de admissão a estudos secundários. Não sendo isso comum no lugar e não havendo dinheiro, elas recusavam; ele insistia alegando a hipótese de uma bolsa de estudo. Ambas acabaram por ceder, Albert passou de forma brilhante, entrou o liceu e chegou à universidade. Fez o doutoramento em Filosofia – sobre Santo Agostinho – e tornou-se ensaísta, jornalista, filósofo, romancista, dramaturgo, poeta, resistente. Em 1957, quando recebeu o Prémio Nobel da Literatura, redigiu duas cartas: à mãe e ao Senhor Germain. Em sequência, dedicou-lhe os “Discursos da Suécia”.

Um outro professor é recordado por Camus com equivalente estima, pelo contributo inigualável que deu para a erudição que conseguiu e, especialmente, para a coragem que teve de começar a escrever. Chamava-se Jean Grenier e ensinou durante algum tempo no Liceu de Argel. De formação filosófica, era um académico profundo, com vasta obra centrada no enigma que é o ser humano. A ele dedicou “O avesso e o direito” e “O homem revoltado”.

Na edição, num só volume, que tenho de “O avesso e o direito seguido dos discursos da Suécia”, da antiga Livros do Brasil, lá estão juntos, Louis Germain e Jean Grenier, como estiveram na infância e juventude de Albert.

Passemos ao presente. A ideia, imposta sem resistências de maior, de que todos os “agentes sociais” devem participar na educação escolar, pretende colocar pais e professores em pé de igualdade: casa e escola, têm-se fundido e confundido. Descuida-se a advertência de Arendt de que são domínios distintos – da vida privada e da vida pública – e que assim devem permanecer, em favor da formação da criança rumo ao estado de adulto [4]. A proliferação de redes sociais, que desperta a compulsão para as usar, associada a outros factores, debilita a missão educativa da escola. É, portanto, hoje mais verdade o que Savater disse há alguns anos: “os professores são apenas empregados ao serviço dos preconceitos familiares” (…) “seria bom lembrarmo-nos de Monsieur Germain”[5].

A partir do que os filhos lhes dizem ou gravam, do que ouvem dizer ou supõem que acontece, com hábitos que ficaram da pandemia, são cada vez mais os pais que mantêm os professores sob vigilância, escrutinam o seu trabalho ao pormenor, e pronunciam-se sobre ele numa “linguagem desabrida”

A partir do que os filhos lhes dizem ou gravam, do que ouvem dizer ou supõem que acontece, com hábitos que ficaram da pandemia, são cada vez mais os pais que mantêm os professores sob vigilância, escrutinam o seu trabalho ao pormenor, e pronunciam-se sobre ele numa “linguagem desabrida”. A conflitualidade tem aumentado, o virtual reforçou certa postura abusiva pré-existente, a comunicação tende a ser leviana, agressiva, impulsiva e irreflectida. Isto foi apurado pelas jornalistas que acima mencionei:

“Em poucos minutos, qualquer assunto, do mais trivial ao mais grave, gera uma torrente de mensagens, sempre com muitos emojis à mistura, GIF, fotos, vídeos e frases inspiracionais (…) numa espécie de reunião de pais em permanência, que os aproximou da escola de uma forma nunca vista (…) a escola mudou-se para dentro de casa (…), os professores nunca foram tão confrontados por pais ansio­sos e convictos de que eles é que sabem ensinar”.

Podemos aqui alegar que a responsabilidade é também dos professores pelo facto de, por motivos vários, se deslocarem do seu papel: facultam os seus números de telefone, alargaram horários e formatos de diálogo, disponibilizam informação profissional… Em diversos casos será verdade, mas há que atender ao fenómeno mais vasto em que encaixa: a consistente e plurifacetada fragilização da identidade docente.

Aqui chegado, dirá o leitor que este texto tende a glorificar o professor, pela simples razão de ser professor ou, então, a torná-lo vítima das famílias, do sistema, da sociedade. Ora, o vasto universo docente não cabe numa ou noutra apreciação. Alguns, ou até muitos, é diferente da totalidade. Vejamos: “todos os dias, nas nossas escolas, há professores que cometem actos deontologicamente discutíveis”, escreveu Teresa Estrela[6], professora de Educação, pelo que algum olhar exterior é preciso em prol do cuidado que os alunos requerem, mas não este que as jornalistas identificaram. É inaceitável remediar um mal, ou um potencial mal, com outro pior.

O “mau ensino”, o “anti-ensino”, que muitas vezes se traduz “apenas” em evitar ensinar, para evitar conflitos, deixando o aluno entregue à sua própria sorte, na esperança de que aprenda de modo “autónomo”, é um acto “nocivo”, “devastador”, “ruinoso” naquilo “que existe de mais vital num ser humano”, alertou George Steiner; é “quase literalmente, criminoso e, metaforicamente, um pecado”. Os professores que o protagonizam, mesmo sem dele terem noção, são nada menos do que “amigáveis coveiros” dado que “têm nas mãos o mais íntimo dos seus alunos, a matéria frágil e incendiária das suas possibilidades”.

É esta consciência distintiva de quem se empenha por ensinar com o fim – e volto a Steiner – de “encorajar a dissidência” dos que lhe calham em sorte, de prepará-los “para a partida”, que o Senhor Germain representa. Camus compreendeu bem essa liberdade de poder partir, que advém do conhecimento, e reconheceu-a, nomeadamente no seu discurso na Câmara Municipal de Estocolmo. Disse: “a liberdade é perigosa, tão dura de viver como excitante”.

Volto a Savater para, com ele, reforçar o respeito ontológico que é devido às crianças e aos jovens, mesmo que se vejam frágeis, insignificantes, desfavorecidos, como Camus, resgatado, na escola, para a “palavra libertadora”. O ensino tem, sim, uma importância emancipadora, que, sendo única, não se pode ignorar, relativizar ou desvirtuar; e os professores, se o são de verdade, têm de assumir o dever de educar que lhe cabe. Levar a uma compreensão ampla desta ideia, afinal tão simples, de modo a preservar o espaço relacional que pertence a professores e a alunos, é uma tarefa que se impõe.

Uma nota final: o Senhor Germain respondeu ao seu cher petit. Na longa carta, não menos comovente que lhe escreveu, mencionava ameaças que, no seu entender, recaiam sobre a escola, as ingerências externas desavisadas eram uma delas.

 

[1] Trata-se do artigo “WhatsApp: a nova arma dos pais”, publicado na Revista do jornal Expresso de 20 de Maio de 2022 (https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2586-2/html/revista-e/-e/whatsapp-a-nova-arma-dos-pais).
[2] Georges Gusdorf (1968). Professores para quê? Para uma pedagogia da pedagogia. Lisboa: Morais Editora.
[3] Entrevista a Nuccio Ordine: Lo que cambia la vida de un estudiante es un buen profesor. In Diario de Sevilla (https://www.diariodesevilla.es/delibros/nuccio-ordine-escritor-profeso_0_1643835602.html).
[4] Hannah Arendt (1957/2006). A condição humana. Lisboa: Relógio D’Água.
[5] Fernando Savater (2009). Elogio de ‘monsieur’ Germain. In El País de 14 de Novembro (https://elpais.com/diario/2009/11/14/opinion/1258153204_850215.html).
[6] Teresa Estrela (1995). Deontologia e profissionalismo. In Seminário: A profissão docente. Fenprof.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.