Este título parece bastante inútil. Para quê elogiar tamanho consenso? De facto, à centralidade do homo faber – na versão do capitalismo da produção e do consumo – corresponde uma hiperestimulação do desejo do tempo livre. Talvez seja mais fácil encontrar um discurso cristão acerca da dignidade do trabalho do que uma espiritualidade do tempo livre, mesmo quanto se reconhece que a noção de santidade do tempo é inseparável da experiência bíblica do «sétimo dia» – o «entretanto» da festa de Deus, a irrupção do definitivo na fragilidade dos dias.
O tempo livre é vivido com uma particular intensidade na modalidade moderna das férias. É um tempo plural. Nuns casos, exprime-se a nostalgia do contacto com a nudez do mundo, resistindo a uma cultura de imobilidade e de fechamento face à diversidade do meio. Noutros casos, valoriza-se a experiência de liberdade, procurando paisagens ainda não frequentadas. As férias dão corpo a uma rutura com o tempo metrificado pelo trabalho, alargando o campo da experiência da gratuidade e facilitando novas experiências sensoriais, nas quais o cosmo se descobre como lugar de comunhão e não apenas de exploração. Assim, as férias podem ser lidas como uma dilatação do tempo dominical, o tempo da alegria da criação – a dança de Deus com as criaturas.
Assim, as férias podem ser lidas como uma dilatação do tempo dominical, o tempo da alegria da criação – a dança de Deus com as criaturas.
O tempo livre pode ser um ensaio de reencantamento do mundo, favorecendo a relativização da ordem normalizada do quotidiano tecnológico, produtivo e funcionalizado. Os itinerários de férias permitem, tantas vezes, o corpo a corpo com a natureza – o sol, o vento, o mar, o solo… Esta experiência deveria permitir o aprofundamento de uma ética do cuidado cósmico, uma vez que a nossa fruição do mundo exige a responsabilidade pela manutenção dos seus equilíbrios. Sem ingenuidades, admitamos, as férias industrializadas pressionam significativamente o meio. Mas talvez a experiência da ecologia do tempo livre nos possa tornar mais atentos a outras ecologias, nas quais descobrimos que a preservação das diversidades é, no sentido bíblico, uma responsabilidade partilhada com o Deus criador.
Dizemos que as férias passam depressa. É uma forma de exercitarmos o desejo do tempo livre e exorcizarmos o jugo do tempo da produtividade. Mas as férias podem ser o tempo da lentidão. Ou seja, o tempo em que demoramos sobre as coisas – há coisas que só na lentidão se tornam visíveis. A disseminação de dispositivos portáteis que, entre outras coisas, fotografam o tempo livre, facilitou o cultivo desta suspensão do tempo – o horizonte, o pôr-do-sol, a luz refletida no rio, o mistério do nevoeiro, a surpresa de uma flor, a potência do mar, tudo se imobiliza na fotografia, para ser tatuado como memória e biografia.
Mas as férias podem ser o tempo da lentidão. Ou seja, o tempo em que demoramos sobre as coisas – há coisas que só na lentidão se tornam visíveis.
A experiência das férias, enquanto tempo livre, veicula uma criativa relação entre passado e futuro. Tantas vezes as férias são um regresso aos lugares onde somos felizes. Não se trata de um regresso ao mesmo. Esse solo arável da nossa memória alarga o nosso futuro, uma vez que nesses lugares de felicidade encontramos o que verdadeiramente importa, ao redor de uma mesa, no reconhecimento dos rostos, na troca de afetos, na partilha intergeracional, no tecido das histórias recontadas. Talvez a hospitalidade seja um dos valores mais celebrados na experiência das férias. Ser bem-vindo é aquilo que mais apreciamos no trânsito destes dias. Na generosidade da festa, na alegria da hospitalidade, no bom-humor confiante, na santidade do repouso, dizemos ámen à bondade da vida. Esse é o elogio cristão do tempo livre.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.