É uma verdade universalmente aceite que todo o artista, ao dar forma a uma criação sua, se presume senhor absoluto do seu destino. Sabemos – ou gostamos de pensar – que a arte pertence, antes de mais, ao seu autor: às suas intenções, ao seu silêncio, à sua escolha de mostrar ou esconder. E, no entanto, há momentos em que essa certeza vacila, especialmente quando a voz do criador já não pode mais afirmar-se. A recente publicação de Notes to John (Knopf, Abril 2024), um livro póstumo de Joan Didion composto por anotações íntimas de sessões de terapia, obriga-nos a revisitar a velha tensão entre o interesse literário e o respeito pela privacidade. Quem tem, afinal, a última palavra sobre o que deve ser publicado?
Esta questão não se coloca – a meu ver – com obras de ficção póstumas. A literatura está cheia de obras publicadas depois da morte dos seus autores – e, muitas vezes, devemos a esses gestos tardios algumas das vozes mais luminosas da tradição literária. Emily Dickinson, por exemplo, viu apenas 10 dos seus poemas publicados em vida; a esmagadora maioria da sua produção – hoje central no cânone da poesia
estadunidense e mundial – foi organizada e divulgada postumamente. Jane Austen, por sua vez, deixou dois romances inéditos quando morreu: Persuasão e A Abadia de Northanger, ambos publicados meses depois por vontade do seu irmão, Henry Austen.
No caso do romance póstumo de Gabriel García Márquez – Vemo-nos em Agosto – a questão ética torna-se mais delicada. Embora se trate de ficção, García Márquez deixou indicações claras de que não queria ver o manuscrito publicado. Escreveu o livro na fase final da sua vida, partilhou-o com o seu editor, mas confidenciou aos filhos que não gostava do que tinha escrito e que preferia que nunca fosse publicado. Apesar disso, Rodrigo e Gonzalo García Barcha decidiram publicá-lo dez anos após a sua morte: «Num ato de traição, decidimos antepor o prazer dos seus leitores a todas as considerações. Se eles o celebrarem, é possível que Gabo nos perdoe. Confiamos nisso.» (Prefácio, Vemo-nos em Agosto, 8).
Mas se na ficção, mesmo póstuma, há quase sempre um pacto implícito com a partilha – uma expectativa, ainda que remota, de publicação –, o mesmo não se pode dizer da não-ficção íntima. E é aqui que Notes to John levanta desconforto. Ao contrário de um romance ou de um poema, o livro agora editado reúne anotações feitas por Joan Didion durante sessões de terapia, dirigidas a um interlocutor ausente: o seu falecido marido, John Gregory Dunne. Não há qualquer indício de que Didion tivesse intenção de tornar público este caderno. Pelo contrário, tudo no tom e no conteúdo sugere um espaço privado, quase sagrado. Aqui, o leitor deixa de ser cúmplice da imaginação e passa a ser, ainda que involuntariamente, testemunha de uma intimidade não preparada para ser lida.
Quem abrir estas páginas deve fazê-lo com a consciência de que está a entrar num espaço para o qual nunca foi convidado. Com o respeito silencioso de quem cruza uma porta entreaberta sabendo que, para um escritor, o gesto de escrever, especialmente quando feito num contexto de luto, fragilidade ou recolhimento interior, não tem automaticamente o propósito de ser publicado.
O livro está publicado, e o acesso é livre. Mas talvez o mais importante, agora, não seja discutir se Notes to John deveria ou não ter chegado às livrarias, mas sim perguntar como o devemos ler. Nem tudo o que se publica precisa de ser lido como literatura. Quem abrir estas páginas deve fazê-lo com a consciência de que está a entrar num espaço para o qual nunca foi convidado. Com o respeito silencioso de quem cruza uma porta entreaberta sabendo que, para um escritor, o gesto de escrever, especialmente quando feito num contexto de luto, fragilidade ou recolhimento interior, não tem automaticamente o propósito de ser publicado.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.