No país das maravilhas – o da Alice, não o Portugal dos nossos sonhos – há um personagem intrigante que freneticamente passa o tempo a correr atrás do tempo. O relógio que traz nas mãos aceleradas assemelha-se, nos dias de hoje, mais do que à sua versão moderna do smart watch, que conta passos e faz estatísticas do ritmo cardíaco, a um smartphone. O coelho da Alice é muito parecido com os atuais suricatas digitais: pessoas que vivem presos a um scroll quase infinito, a correr de imagem em imagem, acelerando de vídeo para vídeo, anestesiados pela diversão, seduzidos pela velocidade, fascinados pela cor e embriagados pelo movimento.
Neste verão, tive a oportunidade de voltar a animar campos de férias inacianos, com alunos do 9.º e 10.º ano, num local genesíaco, às portas da Serra do Gerês. Durante 10 dias, de calor intenso e muita simplicidade, os 40 participantes não viram um único ecrã, não frequentaram redes sociais, não consumiram conteúdos digitais, não comunicaram através de mensagens. Mas apesar de nunca terem usado o telemóvel, durante estes 10 dias de novas amizades e muito serviço, o digital esteve sempre presente: nas piadas, nas danças, nas conversas, nas referências, nas relações humanas, em quase tudo o que fizemos. Por vezes, era como se já não existisse uma distinção clara entre o virtual e o real, como se o real sem o virtual já não existisse. As referências e imagens que usamos estão condicionadas pelos vídeos que vemos, pelos influencers que seguimos, pelo que o algoritmo oferece. A forma como olhamos o mundo está profundamente marcada pelo virtual.
Por vezes, era como se já não existisse uma distinção clara entre o virtual e o real, como se o real sem o virtual já não existisse. As referências e imagens que usamos estão condicionadas pelos vídeos que vemos, pelos influencers que seguimos, pelo o que o algoritmo oferece. A forma como olhamos o mundo está profundamente marcada pelo virtual.
Muitas vezes oiço os pais saudavelmente preocupados em controlar o que os filhos veem nos seus smartphones e em saber se os conteúdos estão adequados à idade. Não sei se também o fazem para si, autocriticamente, refletindo sobre a forma como usam o smartphone, ou como se deitam e acordam com ele. Todavia, talvez não nos devêssemos só preocupar com o que os mais novos veem, mas também com a visão do mundo que o que consomem está a criar como realidade irrefutável. É tão importante que os conteúdos sejam apropriados, como promover visão crítica sobre os mesmos, sob o perigo de ver a verdade diluída numa liquidez virtual onde todos têm opinião e, por isso, todos têm a sua verdade. As imagens podem tanto criar empatia como insensibilidade.
Voltando ao meu campo de férias (“o melhor deste verão!”). Se, por um lado, o digital é a divina referência de tudo, por outro, há uma grande sede de silêncio, de contemplação e de simplicidade. Em contraste com o suricata digital, que corre ansiosamente de tik tok em tik tok, na sofreguidão instantânea do instastory ou na ditadura de beReal, devorando o máximo de vídeos de youtube que caibam nas suas curtas 24h do dia, há uma nova espécie rara a desenvolver-se: a águia contemplativa, que, pairando sobre a brisa, observa do alto e é seleta no alimento. Uma águia que afasta os olhos dos ecrãs para respirar silêncio e contemplar a natureza, ou, simplesmente, sem filtros ou perfecionismos virtuais, a humanidade do rosto do outro.
Num texto conhecido sobre o papel da imaginação nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio, o P. Peter Hans Kolvenbach, sj, faz uma sábia distinção entre as imagens-espelho e as imagens-ícone. As imagens-espelho são aquelas que circunscrevem a vida ao reflexo de si, cegando pela constante autorreferência; as imagens-ícone são aquelas que abrem o horizonte ao mistério e projetam a vida no discernimento altruísta do magis. Por vezes, não é fácil distinguir entre umas e outras: há projeções que aparentam ser santas, mas que escondem falsas seguranças ou desejos subtis de poder, de honra e de êxito. As imagens-espelho curvam-nos sobre o nosso perigoso umbigo, sufocam-nos com as nossas santas preocupações e cegam-nos com o absoluto das nossas válidas necessidades. As imagens-ícone, pelo contrário, libertam o nosso olhar: fazem-nos contemplar o rosto dos outros com respeito, autocrítica e realismo; escutar as palavras dos outros com silêncio, paciência e profundidade; ter um horizonte mais vasto, real e humano. As imagens espelho promovem a auto-idolatria, nas imagens-ícone ajuda-nos descobrir quem nos contempla.
O coelho corre atrás do tempo, frustrado por não ter tempo para viver o tempo. A suricata, anestesiada pela imagem, vive com os olhos presos ao ecrã. A águia, no seu voo lento, ecologicamente contempla, em busca do magis do outro. Mais do que escolher uma mascote ou avatar, refletindo sobre a nossa experiência, fixemos o nosso olhar, com esperança, no horizonte, deixando-nos contemplar como imagem-ícone. Atentos ao tempo, às imagens e às paisagens humanas que nos rodeiam, por entre as frinchas dos acontecimentos, contemplemos a complexidade da vida, procurando perceber como podemos cada vez mais nos libertar do apetite voraz do papão do umbigo.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.