Cada criança nasce com um enorme potencial. No entanto, muitas não têm acesso à educação, ao apoio e à oportunidade de que necessitam para se desenvolverem. O código postal pode ser uma sentença, com um peso demasiado grande na capacidade de escolha e auto-determinação de todas as crianças.
Não chegamos à escola com as mesmas condições de partida
O contexto influencia a retaguarda de cada criança. Um aluno de 11 anos visto como ‘mal comportado’ contou que a mãe o tentou raptar. O pai foi buscá-lo para viver com ele e esta mudança significou tudo para o aluno. “Não dá troco” a ninguém porque “ninguém o vê como ele é”.
Um outro aluno de 16 anos, que ainda estava no 6.º ano depois de múltiplas retenções, não sabia do paradeiro do pai e, encontrando-se a mãe encarcerada, fez com que tivesse de viver com a avó doente, com poucas possibilidades de comunicação com a escola.
Uma aluna de etnia cigana viu negado o seu vale de compra de livros escolares por alguém que considerou que “já não valia a pena”. . Um aluno chegou à escola sem lápis para escrever porque simplesmente ninguém lhe perguntou se tinha tudo antes de sair de casa. Noutro caso, um aluno não almoçou na escola durante um mês porque a mãe não sabia fazer o pedido para o almoço gratuito a que tinha direito. Por fim, um aluno foi entregue pela mãe a outra família do bairro, onde passou fome, e foi retirado da mesma pela CPCJ, tendo sido colocado numa casa de acolhimento.
Todos têm uma história e todos precisam de ser compreendidos. Estes são exemplos reais de quem não chega à escola com as mesmas oportunidades de outros. De quem vai ter sempre que ultrapassar inúmeras barreiras, muitas mais do que os seus pares. De quem ainda vai ter de vencer as expectativas baixas que têm sobre eles e ter uma capacidade de resiliência muito superior à de outras crianças.
Na escola, não têm todos as mesmas oportunidades
Os resultados mais recentes do PISA 2018 indicam que em Portugal a diferença de conhecimentos entre os alunos mais desfavorecidos e os seus pares oriundos de famílias de maior rendimento equivale a um atraso de dois anos nas aprendizagens. Dois anos. Este diferencial é constante entre 2003 e 2018, o que significa que o fosso educativo dos alunos desfavorecidos não tem diminuído neste século. Na escola, crianças e jovens com estas histórias são muitas vezes julgados.
A pandemia amplificou e exacerbou o problema
A pandemia criada pela COVID-19 só veio tornar ainda mais visível o fosso existente, numa dimensão nunca antes sentida. As divisões acentuaram-se porque as condições para acompanhar o ensino à distância dependem fortemente dos recursos intelectuais da família.
Muitos alunos não iam à escola buscar o seu almoço, com vergonha de serem vistos. Outros levantavam-se ao meio-dia porque ninguém lhes ensinou a ter disciplina. Outros ainda tinham a família agarrada às aulas dos filhos para poderem aprender também com o professor. Muitos não sabiam inserir uma página no Word. Outros tinham vergonha de dizer que não tinham computador ou telemóvel para participar no ensino à distância. E tantos outros só podiam aceder ao telemóvel do pai ou da mãe, à noite.
De acordo com um relatório publicado recentemente por investigadores da NOVA SBE, os alunos destes meios desfavorecidos vivem muitas vezes em casas onde entra água, sobrelotadas, com frio e sem luz para estudar. Os diferentes elementos da vida destes alunos puxam-nos para baixo como um íman. Como se esta fosse a sua condição natural e não houvesse oportunidade de saída.
Elevadas expectativas para todas as crianças
Em Portugal, os obstáculos que afetam crianças de contextos vulneráveis são muito semelhantes aos de qualquer outro país. Uma criança de um contexto pobre em Portugal tem mais em comum com uma criança do mesmo contexto na Áustria, no Peru, na Índia ou em Angola, do que tem com outra criança de um contexto mais favorável no seu país.
Eu tive sorte. Nasci num contexto privilegiado, numa família que valoriza a educação, que esteve sempre presente e que me encorajou a perseguir os meus objetivos. Vivi rodeado de professores e amigos que tinham expetativas elevadas para mim. Estudei e trabalhei em vários países, sempre de acordo com as minhas escolhas e apoiado pelos que me acompanhavam. É também isto que quero para os meus três filhos. É isto que quero para todas as crianças: que tenham oportunidades, que se sintam acompanhadas, que estejam rodeados de família, amigos e professores que acreditam no seu potencial e que possam escolher o seu percurso.
Para isso, a Educação deve começar pela relação com o aluno porque ‘nenhum aluno aprende bem com alguém de quem não gosta’. E cinco minutos fazem toda a diferença: nos intervalos, nos inícios das aulas com música, no cumprimento e no caminho para casa. Cinco minutos para perguntar: ‘como te sentes hoje?’. Cinco minutos para dizer: “vi o que fizeste e fiquei mesmo contente contigo”. Cinco minutos para conhecer os sonhos, os receios e o que se passou em casa naquele dia.
De facto, é a soma deste conjunto de ações minúsculas, que parecem insignificantes, que torna tudo transformador na vida de cada aluno. Neste sistema de múltiplas variáveis, há potencial em todos os atores do sistema educativo. É imprescindível contagiar todos com ânimo, propósito e escolhas, para que possamos construir coletivamente uma escola mais justa para todas as crianças. Uma escola que seja um lugar para cada criança, e onde todas acreditem que podem ser tudo o que quiserem ser.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.