O Bom Abade

Estendia as mãos como ramos que acolhem e não prendem.

Cruzei-me com ele no final de uma manhã de inverno, quando o sol já apagava a geada das vinhas nuas. Enquanto estava sentado numa pedra e aquecia as mãos numa chávena de café, este homem tocou-me na consciência, como quem vem suave tocar-nos o ombro. Tinha o rosto familiar de um bisavô risonho, mas não era velho. Posso dizer que tinha um ar ancestral e fresco, como se passasse pelos dias sem que os dias pesassem nele.

Os olhos estavam habituados aos horizontes cortados pelos montes, mas nem por isso a alma era estreita. Penetrantes até à amplidão do infinito, faziam do granito maciço a transparência mais clara: todos os montes e vales se abriam em planícies naquela alma suave e alada.

Unia a alma leve à densidade de uma humanidade terrena. Tinha o coração vibrante aberto a todos, unicamente por ser incapaz de não descobrir ternura e calor num rosto concreto. O coração ferido de homem não escondia o humano desejo por laços fortes e penetrantes como raízes, a vontade subtil e sincera de um lugar de conforto. Assim, às vezes, queria um ninho. Mas, por dentro dos membros ossudos de homem, algo mais interior se revoltava e exigia voo.

O coração ferido de homem não escondia o humano desejo por laços fortes e penetrantes como raízes, a vontade subtil e sincera de um lugar de conforto.

Deus lançara-lhe à alma um fio que o prendia ao alto, mas sem lhe confiscar do coração o peso que tende para a terra e a carência que precisa irremediavelmente do amor concreto da proximidade e companhia. A anatomia, quer do corpo, quer do coração, é terrena. Disse-me ele que parecemos demasiado pesados para ter um destino celeste! Curiosamente, todos estão assim desenhados.

Se ao menos os pés fossem arrebatados da terra! Pensava ele, quando a paz lhe permitia alargar a imaginação pelo desejo fora. Mas o bom abade tinha o coração nas raízes e sabia que só uns pés arraigados no chão ensinam os olhos a olhar o céu. “É que eu sou tão terreno, tão terreno”, confessava-me ele com o espírito pobre de quem herdou o céu e a mansidão de quem possui a terra. E num sorriso humilde e conformado, lá ensinava a si próprio que sem pés, olhos e coração humanos, ninguém é capaz de qualquer céu. É a riqueza da carência, que inevitavelmente procura o terreno quente e fértil da proximidade e lança raízes nos corações.

Por isso, habitava entre os corações onde lançava raízes e a força alta que o desenraizava, como quem habita entre a luz e a cruz, descobrindo-as irmãs e inseparáveis. Essas raízes lançadas permitiam-lhe ser como árvore firme, aberta em sombra fresca, em abrigo seguro e confidente. E, como às árvores, os corações que pelas raízes o nutriam pediam-lhe mais presença que palavras. De facto, sentia sempre que as palavras lhe fugiam como a água dos ribeiros. O seu grande gesto era estar ali não podendo estar noutro lugar. A sua grande eloquência era a presença meiga e o sorriso aberto como um ouriço maduro.

Estendia as mãos como ramos que acolhem e não prendem. Um aperto de mão, um toque no ombro, uma pancada nas costas, um abraço. E os dedos, como folhas, enxugavam as lágrimas que, como ele assegurava, eram irmãs da chuva que faz florir os rebentos no tempo certo. Mãos paternais (ou até maternais, numa delicadeza feminina de alma), lentas para acusar e diligentes para consolar.

A sua mansidão de cordeiro dava-lhe um coração de pastor. E o fio invisível que do céu o conduzia dava-lhe a alma de peregrino. “Somos todos assim, de corações feridos. Mas é por aí que entra luz. É daí que saem as raízes. E olha, essas raízes que são tão terrenas…se não as temos, não crescemos para o céu”.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.