The Wall Street Journal informou recentemente que uma escola secundária pública no Massachusetts tinha retirado Homero do currículo, dando ocasião a que uma professora, Heather Levine, exprimisse a sua satisfação: “Muito orgulho em dizer que a Odisseia foi retirada do currículo este ano!”.
Homero é um dos maiores monumenta do nosso passado. Não há área da criação humana, desde a poesia à retórica, desde a música à religião e às artes, desde a geografia à filosofia política, que não tenha recebido inspiração inicial dos heróis homéricos. No princípio era Homero…
A tristemente célebre professora Levine não é caso isolado. Como reconhece a autora da peça no WSJ, está há muito em marcha um programa para substituir o que se lê na escola. O que acontece é que as redes sociais, mais propícias à retórica da emoção do que à da razão, intensificaram aleatoriamente o potencial daquele programa.
Foi o que aconteceu com o movimento #Disrupttexts, que entrou no Twitter em janeiro de 2020 para “reconstruir o cânone literário numa perspectiva de crítica literária antirracista e anti discriminatória” e “criar um curriculum mais inclusivo…” ou seja, para combater o cânone literário tradicional, tido como instrumento de repressão.
Se o cânone, que o próprio Harold Bloom defendeu, pretendia transmitir às gerações o melhor do que já foi pensado, escrito e representado, para os arautos da “revolução permanente” imposta pelo marxismo cultural, qualquer juízo de valor (implícito na escolha de ‘o melhor’) é visto como suspeito – a menos que resulte na acusação da cultura ocidental, branca, europeia, cristã e machista. Estabelecer um cânone fere os princípios democráticos.
Assim, o cânone dito inclusivo exprime-se no repúdio de tudo quanto as humanidades tradicionalmente defenderam; projecta-se em programas voltados para a Pop Culture, em detrimento da impopularmente chamada alta cultura.
Assim, o cânone dito inclusivo exprime-se no repúdio de tudo quanto as humanidades tradicionalmente defenderam; projecta-se em programas voltados para a Pop Culture, em detrimento da impopularmente chamada alta cultura. Pretende, aliás, apagar a distinção qualitativa entre alta cultura e Pop Culture. Termos como humanismo e busca desinteressada da verdade afiguram-se esvaziados de sentido. Em lugar de Homero ou Virgílio, os estudantes de Pop Culture ocupar-se-iam da análise de videoclips da Madonna. E por fim, abandonar-se-ia o estudo das grandes obras da tradição ocidental para dar atenção a materiais secundários, de importância intelectual duvidosa – desde que ao serviço de certos objectivos políticos.
O fenómeno não é novo: Roger Kimball descreveu-o em 1990 num livro famoso sobre Radicais nas Universidades (Tenured radicals: how politics has corrupted our higher education. Harper Collins Publishers em que mostrou, com muita propriedade, como já então o debate académico reduzia todas as dimensões do homem e da cultura às “relações de poder” e ao “conflito de interesses”, ou seja, à política.
Um dos debates a que o autor se refere foi o que, em 1988, levou à extinção do curso sobre cultura ocidental na Universidade de Stanford. Membros da União Estudantil Negra alegaram que exigir aos caloiros uma disciplina de cultura ocidental era uma medida racista e sexista. Vale a pena notar, refere Kimball, que o “racismo” de Stanford só era problemático se direcionado contra certos grupos. Só assim se explica a carta escrita em Junho de 1988 ao jornal estudantil local pelo Presidente da União Estudantil Negra, em que este lamentava que a maioria dos estudantes de Stanford fosse branca, de classe média privilegiada, protegida e apática…. E confessava: “eu não gosto da maioria das pessoas brancas”!
Que teria acontecido se, no lugar de branco, o jornal tivesse publicado aquela carta com o adjectivo negro? No entanto, foi neste contexto que Stanford assistiu a uma passeata de estudantes gritando: “hey, hey, ho, ho, Western culture’s got to go”. E foi assim que a Universidade, até então considerada um dos mais elevados frutos da cultura ocidental, prescindiu da obrigatoriedade do curso sobre ‘cultura ocidental’. Em vez desse programa, descartado como disfarce de privilégios de classe, criou um outro designado “Cultura, Ideias, Valores” (sem a designação “ocidental”, que o desqualificaria).
Requisitos do programa? Incluir obras “escritas por mulheres, minorias e pessoas de cor”, acerca de “questões de raça, sexo ou classe”. Sobre mérito literário, excelência estética, elaboração filosófica ou importância histórica, nada se disse. Esses critérios pertencem à herança racista e sexista da cultura ocidental a abater. De acordo com Kimball, o debate académico abandonou a Literatura e a Filosofia propriamente ditas (com as suas preocupações, valores e objectivos próprios) para se reduzir ao debate político. Literatura e Filosofia subordinaram-se à agenda política.
Ninguém nega que Literatura e Filosofia tratem de política; mas podemos reduzir a sua essência à política? Só uma visão politizada da educação e uma visão da universidade como palco de acção político-partidária permitem que o curriculum seja redefinido de acordo com as especificidades dos interesses de “raça, classe e género” – a nova versão do marxismo intelectual ou ecletismo de esquerda.
Enquanto novos intelectuais denunciam a “hegemonia” da cultura ocidental, acusada de sexista, racista, reacionária e passivamente reverente, vemos a Escola abraçar ideologias intelectuais da moda, e a educação superior submeter-se a imperativos políticos.
Enquanto novos intelectuais denunciam a “hegemonia” da cultura ocidental, acusada de sexista, racista, reacionária e passivamente reverente, vemos a Escola abraçar ideologias intelectuais da moda, e a educação superior submeter-se a imperativos políticos. Diante do triunfo de radicalismos feministas, com a sua obsessão pela dominação masculina e pelo ‘género’ como categoria fundamental de análise literária, não é a Literatura que soçobra?
“A ideia de que o curriculum deva ser alterado de acordo com qualquer propósito partidário é uma perversão do ideal da universidade”, escreveu o filósofo de Berkeley John Searle, um dos maiores filósofos contemporâneos (The New York Review, 1991). “O objectivo de converter o curriculum em instrumento de transformação social (de esquerda, de direita, de centro ou o que seja) é o exacto oposto do ensino superior”.
Dir-se-ia que, para a agenda política das Universidades, ensinar não é transmitir conhecimento, mas apenas gerar insatisfação. De facto, quanto mais cresce a politização das humanidades, mais cresce a ignorância do legado humanista. Mas os perdedores serão, em primeiro lugar, os alunos. O desmantelamento do curriculum em nome de agendas políticas é uma medida tirânica que os priva do melhor que foi pensado e dito. Com o tempo, ficarão as Universidades a perder, pois os alunos hão-de um dia descobrir que estas nada lhes ofereceram a não ser “treinamento ideológico, cultura pop e jogos herméticos de palavras” (Kimball, p. 31). E em última instância perdem as democracias, que deixam de ver garantida não só a liberdade da actividade cultural e artística, como até a própria independência das instituições de ensino superior. Veja-se o cancelamento neo-inquisitorial de contas de Twitter, Facebook, Youtube (a nova praça pública), de utilizadores dissidentes do mainstream. Esse atentado à liberdade de expressão não será já um fruto maduro do treinamento ideológico operado pelas Universidades?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.