Não sabemos o que aí vem. Já sabemos o que queremos ser?

Acolher a cicatriz desta vulnerabilidade, que não é um acidente mas uma marca da nossa condição humana, é um convite à conversão da nossa sensibilidade.

Deus não vem mudar as situações, vem mudar os corações. Assim dizem os bispos portugueses na sua mensagem para o Advento. Ora, se nem Deus nos pode garantir a mudança de uma situação tão pesada, se nem a Ele é possível perguntar, “Mas quando é que isto acaba?”, o que nos resta quando não sabemos o que aí vem, se não sabemos nem o dia, nem a hora em que tudo passará?

As respostas fáceis e os lemas pegajosos não nos servem. Também servirão de pouco a quem tem 40 e vive sozinho, a quem a cada isolamento dos filhos se desdobra numa gestão de impossíveis, a quem experimenta o peso da idade e da solidão ou ainda a quem perdeu o emprego e a esperança, lições de grandeza humana vindas de quem não vive na pele nenhuma dessas situações.

Sem lições, nem receitas arrisquemos um breve exercício de memória sobre dois traços da condição humana.

Somos contingentes. Dito de outro modo, estamos limitados no espaço e no tempo. Contudo, desde que o primeiro galho de árvore foi transformado em instrumento para recolher a fruta do alto de uma árvore que a tecnologia procura estender os nossos limites. E, em alguns momentos, isso faz-nos esquecer que não nos inventámos a nós mesmos, que somos criaturas.

A contingência traz-nos a experiência da impotência, como nos traz a possibilidade do agradecimento. Traz-nos a possibilidade da dor, como nos abre a possibilidade do humor que é justamente a capacidade de nos rirmos dos nossos limites e tropeços.

Acolher a cicatriz desta vulnerabilidade, que não é um acidente mas uma marca da nossa condição humana, é um convite à conversão da nossa sensibilidade.

É nas coisas mais banais (às vezes tão exigentes) que educamos a nossa sensibilidade, que damos a Deus a possibilidade de mudar o nosso coração.

Estamos ligados. O som da palavra e a expressão do gesto são aprendidos diante do outro. Este tempo mostrou-nos a força de algumas ferramentas que nos mantêm interligados. Mas também a sua impotência. Nenhum ecrã substitui a presença de um rosto. A força do rosto do outro de quem temos saudade ou com quem nos cruzamos e as marcas que o nosso próprio rosto vai guardando podem ser ponte. Saberemos fazer das feridas e das rugas uma ponte? Ecoarão em nós os versos de Daniel Faria: “Para me encontrares me deste/A pequenez.”?

Este tempo pode acordar medos e desesperos, disfarçar a pertença em autocentramentos e isolamentos que dividem, gerar desconfianças, potenciar irritações. Nada disto nos deve espantar. Mas nada disto nos deve prender a falsas promessas. Não somos medo, nem desespero, desconfiança ou isolamento. Somos vulneráveis e nessa vulnerabilidade aspiramos a uma plenitude de comunhão que se constrói quando a ferida do outro me dói e apela e quando a minha ferida rompe a autossuficiência.

Podemos viver a partir daquilo que nos foi tirado ou a partir daquilo que podemos dar, cada um na sua condição, limitado no espaço e no tempo. É nas coisas banais (às vezes tão exigentes) que educamos a nossa sensibilidade, que damos a Deus a possibilidade de mudar o nosso coração.

Não sabemos o que aí vem. Já sabemos o que queremos ser?

Fotografia: Edgar Gomez – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.