Não estás longe do Reino de Deus!

Num ano tão atípico como o que vivemos, parece-me que não é absurdo que nos confrontemos com a importância do sentido de humor. No meu caso, tenho confirmado a importância do seu papel, de forma especial, dentro de uma sala de aula.

No capítulo 12 do Evangelho de São Marcos, Jesus tem um encontro com um escriba. Conversam sobre o primeiro de todos os mandamentos e, perante a forma como o escriba Lhe responde, Jesus diz-lhe: “Não estás longe do Reino de Deus!”

É possível que seja a única, mas, quando leio esta passagem, parece que intuo sempre um certo tom irónico, como quem joga ao quente-e-frio e tem de reconhecer: “estás a ficar quente…” Quando recordo este encontro, confirmo a minha convicção de que Jesus tinha e tem um grande sentido de humor.

Acho que isso acontece por me fazer pensar que, na verdade, Jesus poderia ter reagido de muitas maneiras à intervenção do escriba. São Marcos refere que o escriba tinha respondido com sabedoria. “Boa resposta!”, “Falaste bem!” ou “Sabes do que falas!” poderiam ter sido reações razoáveis (talvez não exatamente com estas palavras, pronto…) da parte de Jesus. No entanto, não foi isso que aconteceu. E não acho que tenha sido por isso que o escriba tenha deixado de compreender aquilo que, naquele momento, o Senhor lhe queria dizer. Para mim, Jesus escolheu usar o sentido de humor para se aproximar daquele homem.

Num ano tão atípico como o que vivemos, parece-me que não é absurdo que nos confrontemos com a importância do sentido de humor. No meu caso, tenho confirmado a importância do seu papel, de forma especial, dentro de uma sala de aula.

Com as alterações do calendário escolar e com as mudanças entre o ensino à distância e o ensino presencial (que foi mascarado, com distância e muito desinfetante à mistura), podíamos correr o risco de planearmos as nossas propostas para os alunos com o principal objetivo de recuperar o que não foi feito. No fundo, podíamos pensar que aquilo que lhes fazia falta era trabalhar a bom ritmo, sem grande tempo para distrações ou desvios, para compensar o que ficou por aprender. E, se calhar, até poderia ser. No entanto, e apesar de saber que não sou especialista, não tem sido essa a minha experiência.

Acredito que ter sentido de humor não significa que não sejamos comprometidos na forma como vivemos. Dentro da sala de aula, tenho assistido de perto a como este olhar especial faz a diferença.

Na verdade, tenho experimentado que faz falta o sentido de humor. Faz falta este modo especial de olhar para aquilo que nos rodeia e para aquilo que vamos vivendo. Não acho que se trate de um olhar desleixado ou pouco exigente. Não apenas brincalhão, mas também um olhar crítico, atento e minucioso. Acredito que ter sentido de humor não significa que não sejamos comprometidos na forma como vivemos. Dentro da sala de aula, tenho assistido de perto a como este olhar especial faz a diferença.

Sinto que o sentido de humor é um dos melhores cartões de visita no início de uma relação, ainda que seja preciso saber usá-lo. Como professora, a minha missão vive muito da relação diferente que construo com cada aluno. Trata-se de saber o que se pode dizer, a quem se pode dizer e como e quando se pode fazê-lo. Muda consoante a pessoa, consoante os tempos e, claro, à medida que a relação cresce. Implica investimento e cuidado. No entanto, acredito que é assim que se cria um ambiente descontraído, que, ao contrário do que possa parecer, penso que é o que se deseja para poder aprender bem. Um ambiente que não tira a exigência. Atrevo-me, até, a achar que a aumenta, porque traz verdade. Quando estou descontraído, estou como sou. Não finjo sobre o que ainda não descobri, não escondo aquilo que ainda não percebi e não tenho medo de sugerir e perguntar sobre o que quero conhecer.

Quando existe um ambiente descontraído dentro de uma sala de aula – que, reforço, não é um ambiente desleixado, desregrado ou negligente – surgem mais oportunidades para se poder desfrutar daquilo que lá se faz dentro. Ainda que esta palavra (desfrutar) nos remeta para o fruto de algo, diria que o segredo pode estar em conseguir fazê-lo mesmo sem grandes frutos, mesmo que seja a partir do processo.

Um ambiente que não tira a exigência. Atrevo-me, até, a achar que a aumenta, porque traz verdade. Quando estou descontraído, estou como sou. Não finjo sobre o que ainda não descobri, não escondo aquilo que ainda não percebi e não tenho medo de sugerir e perguntar sobre o que quero conhecer.

Isto implica que saibamos acolher que o processo terá sempre altos e baixos, que percebamos que ninguém aprendeu tudo sozinho e que não acertar à primeira não é o mesmo que falhar redondamente. Com sentido de humor, podemos olhar de maneira diferente para o que saiu mais ao lado e para o que não correu tão bem. No fundo, podemos gozar do e com o erro. Não se trata apenas de uma perspetiva cor-de-rosa com cheiro a algodão doce que constate que todos erramos – ainda que, efetivamente, isso seja verdade. Trata-se de criar e cuidar de um espaço onde isso seja encarado naturalmente e como mais um passo no caminho a percorrer.

O melhor disto tudo? É que quando dois ou três começam a fazer esta experiência e percebem que, diante uns dos outros, podem baixar barreiras e tirar máscaras (por agora, todas menos uma) vão, inconscientemente, dando permissão a que outros façam o mesmo. Nessa altura, o essencial está conquistado. E, aí, podemos rir-nos e brincar com “retas irregulares”, “ângulos paralelos” e “quadrados com volume”. Não como quem ri daqueles vídeos que compilam quedas desastrosas. Mas como quem reconhece que houve espaço para o dizer, tempo e sentido crítico para o esclarecer e pessoas com quem aprender porque é que não faz sentido; como quem desfruta de saber que, naquele dia, leva mais essa conquista na mochila.

Por tudo isto (e, certamente, muito mais), diria que é de “aproveitar a boleia” da Festa do Pentecostes, que a Igreja celebrou este domingo, com a descida do Espírito Santo e dos seus dons. Tal como o Papa Francisco diz , também o sentido de humor é um dom e, por isso, uma Graça a pedir(1) todos os dias.

Quando vivemos com sentido de humor, acredito mesmo que não podemos estar longe do Reino de Deus. Até sinto que nos aproximamos, que o vamos vivendo já por aqui e, talvez sem nos apercebermos, permitimos que outros se aproximem (e o vão vivendo também). Por outras palavras, poderia dizer que ficamos cada vez mais quentes… Mesmo a escaldar!

 

(1) São Thomas More pode dar uma ajuda, com o registo que deixou deste pedido especial que fazia ao Senhor: «Dai-me, Senhor, a saúde do corpo e, com ela, o bom senso para conservá-la o melhor possível. Dai-me, Senhor, uma boa digestão e também algo para digerir. Dai-me uma alma santa, Senhor, que mantenha diante dos meus olhos tudo o que é bom e puro. Dai-me uma alma afastada do tédio e da tristeza, que não conheça os resmungos, as caras fechadas, nem os suspiros melancólicos… E não permitais que essa coisa que se chama o “eu”, e que sempre tende a dilatar-se, me preocupe demasiado. Dai-me, Senhor, o sentido do bom humor. Dai-me a graça de compreender uma piada, uma brincadeira, para conseguir um pouco de felicidade e para dá-la de presente aos outros. Amén.»

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.