Na descida, elevar-se ao amor

Fiquei um tanto ou quanto pasmada quando, à primeira derrota clínica, ele festejou: já não teria de passar por mais um ciclo de tratamentos duros e agressivos, que o deixavam de rastos, no escuro do quarto, na quietude da cama.

Fez esta semana seis anos que os sinais, começados a dar pelo corpo do Constantino no mês anterior, ganharam o nome de cancro. Sem termos comprado bilhete, entrámos numa montanha russa que nos levou, com uma velocidade estonteante, para um mundo de poucas subidas e vertiginosas descidas, muitos exames, esperas, resultados, tratamentos. Eu, que apenas os sofria na alma e não no físico, fiquei um tanto ou quanto pasmada quando, poucos meses depois, à primeira derrota clínica, ele festejou: já não teria de passar por mais um ciclo de tratamentos duros e agressivos, que o deixavam de rastos, no escuro do quarto, na quietude da cama.

O que, para mim, foi anúncio claro que o caminho que então se abria passava por tratamentos menos promissores, foi para o Constantino sinal de regozijo. E, nesse momento, senti crescer cá por dentro uma forma de estar que, entretanto, li traduzida nas palavras de um psiquiatra que exerceu na comunidade da Arca, o Dr. Erol Franko, a propósito de uma pessoa frágil e em declínio: «Talvez seja suficiente aceitar simplesmente acompanhá-la na sua descida».

Não foi de todo um processo fácil. Foi preciso pacificar-me com o que soava a desistência, foi preciso saber quando parar. Aceitar acompanhar o Constantino na sua descida implicou libertar-me dos meus desejos e vontades, que teimavam em apontar para uma direção oposta, com aparência de subida.

Também Pedro, ao aproximar-se a hora da Paixão de Jesus, teve dificuldades em aceitar acompanhá-Lo na descida: no horto, adormeceu; mais tarde, desembainhou a espada e arremeteu-a contra um servo do Sumo Sacerdote, na tentativa de afastar aquele cálice do seu Mestre e Senhor. Julgo que é quando o seu choro amargo, depois de O negar três vezes, é amorosamente acolhido pelo olhar de Jesus, que Pedro reconhece na descida o verdadeiro caminho ascendente para o Amor.

Aceitar acompanhar o Constantino na sua descida implicou libertar-me dos meus desejos e vontades, que teimavam em apontar para uma direção oposta, com aparência de subida.

O que me foi dado viver trouxe-me uma diferente leitura sobre outro Simão, o de Cirene. Aquele que, «ao passar por ali ao regressar dos campos» é requisitado para levar a cruz de Jesus, não o faz numa indiferente ausência de sentimentos e emoções. Simão de Cirene confia. E simplesmente acompanha o Senhor na “descida” para o calvário. Porque sabe que se segue a alegria da Ressurreição!

Faz-nos falta ser mais como Simão de Cirene. Faz-nos falta aceitar mais vezes libertarmo-nos dos nossos desejos e vontades, ceder nos planos que prometem segurança, e acolher a descida. Não apenas a de outros, que somos chamados a acompanhar, mas também a nossa descida. E tantas vezes somos chamados a descer, em pequenos momentos do dia a dia!

O que imediatamente apelidamos de insucesso porque não aconteceu como tínhamos imaginado pode, afinal, ser caminho para algo maior. Se não conseguimos impor a nossa vontade, quiçá seja a do outro a mais válida, e devemos esvaziar-nos da nossa. Se alguém ficou muito além das nossas expetativas, talvez não tenha sido esse alguém a fracassar, mas sim nós a criarmos falsas imagens ou a teimarmos ver apenas a nossa perspetiva.

Aproxima-se o tempo de Advento. Aproxima-se o tempo de redescobrir a Boa Nova que se esconde numa frágil e pobre criança: Deus que se faz homem e desce até nós, para nos elevar em Amor. Num mundo em que se valorizam os primeiros e os grandes, Jesus fala-nos dos últimos e dos pequeninos. Numa sociedade em que se destacam as escaladas até ao topo, Ele desafia-nos a encetar a descida tanto quanto ela nos conduza ao caminho ascendente para o Amor.

Tal como a Pedro, Jesus está a olhar por nós.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.