No mês passado, foi anunciado que as escolas voltariam a encerrar. Desde aí, muita coisa temos visto e ouvido sobre as dificuldades de levar a missão da Escola à distância, começando, muitas vezes, pela falta de meios e instrumentos para o fazer.
Depois da experiência do ano letivo passado, é agora muito claro que não há nada que substitua o ensino presencial. A possibilidade de termos regressado às escolas em setembro (e de aí termos continuado a trabalhar nos meses seguintes) confirmou isso mesmo. Por isso, agora, se, por um lado, a experiência que trazemos connosco faz com que não tenhamos de construir as coisas do zero; por outro lado, encontrando-nos novamente num modelo que sabemos que não permite replicar aquilo que fazemos nas escolas, pode existir um certo cansaço, logo à partida, quando encaramos o que temos pela frente.
Foi no meio da exigência de repetir este desafio que o meu olhar se deteve com atenção num dos pontos (274) da exortação apostólica da Alegria do Evangelho. E, se penso que me faria sentido em qualquer outra altura, acredito que pode trazer uma nova luz ao momento diferente que todos hoje vivemos. De forma particular, parece-me que pode iluminar a missão a que a Escola continua a ser chamada.
Ainda que possa parecer muito óbvio (e talvez seja mesmo!), diria que esta luz passa por reconhecer que, como o Papa Francisco diz, cada pessoa – e, neste caso, cada aluno – é «digna da nossa dedicação».
Não se trata apenas de reconhecer o convite de nos podermos dedicar a qualquer pessoa. Trata-se de tomar consciência de que cada pessoa merece, à partida, a nossa dedicação. Na verdade, falar em mérito até pode soar redutor. Se formos ao dicionário, podemos ver os diferentes significados que o adjetivo ‘digno’ assume e em como abarca mais do que isso.
Numa altura em que, por outros motivos, muito também se tem falado da dignidade da vida de cada pessoa, a escolha desta palavra tocou-me de forma especial. Particularmente, porque esta dignidade não vem como consequência ou reconhecimento das suas competências, ideias ou conquistas (já realizadas ou por aquelas que, pela nossa mão, se possam vir a realizar). A dignidade não tem requisitos: está garantida, logo à partida, desde sempre.
Esta certeza vem de acreditarmos que cada pessoa foi sonhada e criada por Deus à Sua imagem e, por isso, «reflete algo da Sua Glória», como nos lembra o Papa Francisco. Pode soar só bonito ou, talvez, um bocadinho vago. A referência à glória de Deus pode parecer que traz uma espécie de tom celestial e complexo que a impede de ser verdadeiramente significativa. Naquilo que faço todos os dias, tenho-a encarado como um lembrete de que Deus não perde uma oportunidade para me visitar e para Se revelar de alguma forma. E isso não acontece de um modo geral e vago, mas no concreto de cada encontro e conversa que vou tendo com cada aluno. No fundo, tomar consciência de que cada aluno que acompanho reflete, de alguma forma, a glória de Deus é um convite à certeza de me surpreender; é um convite a olhar para além daquilo que, aparentemente, cabe no retângulo em que se apresenta, agora, quando tenho oportunidade de o ver.
Por tudo isto, tem sido diferente entrar todos os dias em sessões online; tem sido diferente ver-me diante de todos aqueles retângulos no zoom e daqueles aí surgem, aparentemente nunca bem enquadrados.
É também por tudo isto que fica mais clara a grandeza do desafio que temos em mãos. Até pode parecer que, agora, cada um dos nossos alunos cabe num pequeno retângulo do zoom. Um retângulo que, sendo já pequeno, ainda diminui à medida que outros alunos se juntam ao encontro marcado. Não é preciso ser especialista para saber o que vamos encontrar quando se fala de um retângulo: quatro lados, quatro ângulos retos, lados iguais e paralelos dois a dois. Está bem definido. Não surpreende.
Então, o desafio está mesmo aqui: em garantir que não nos esquecemos de como se trata de muito mais do que retângulos. Passa por não nos esquecermos de que é cada um dos alunos que aparece em cada um desses retângulos que continua a ser digno da nossa dedicação. E, da mesma forma que não depende das características ou das competências de alguém, esta dignidade também não depende das circunstâncias que hoje vivemos na escola: a proximidade física também não é um requisito.
Na verdade, apesar do retângulo diminuir à medida que outros se juntam, pode abrir uma porta para conhecer mais daqueles que acompanhamos. Às vezes, inesperadamente, este retângulo revela-nos aspetos das suas rotinas, dos seus gostos e das suas famílias. É a oportunidade de ter uma perspetiva diferente, de conhecermos melhor e, de certa forma, de nos aproximarmos.
O desafio é enorme. Ainda assim, diria que a melhor parte é quando, seguindo por este caminho, ainda conseguimos que cada um deles faça a experiência de saber que é a sua dignidade que motiva e entusiasma a nossa dedicação. No fundo, a melhor parte é quando contribuímos para que possa fazer a experiência de saber que é muito mais do que um retângulo; muito mais do que qualquer outra forma, geométrica ou não.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.