No próximo dia 13 de outubro, o beato John Henry Newman vai ser canonizado. A pouco mais de um mês, vale a pena recordar alguns aspectos da sua vida que podem ser sinais luminosos para os nossos dias, até porque a maioria de nós não estará totalmente familiarizado nem com a sua vida nem com a sua obra. Mas num mundo cada vez mais polarizado em conflitos histéricos e superficiais que chegam, por vezes, a entrar pelas portas da Igreja, e em que somos facilmente levados por ondas, modas, sem reparar sequer que não parámos para pensar como deve ser sobre as coisas, nem muito menos para aprendê-las seriamente, estou certa de que o poderoso exemplo e a generosa intercessão deste futuro Santo podem fortalecer-nos e reavivar-nos.
Newman nasceu em 1801, em Londres. Viria a ser o mais velho de seis irmãos. Pelos 15 anos, e inspirado por algumas leituras de autores de influência evangélica e calvinista, experimentou aquilo a que chamou “a sua primeira conversão”. Foi um período decisivo, a partir de qual se sentiu chamado a uma vida dedicada ao serviço de Deus, mesmo não sabendo exactamente o que isso quereria dizer.
Pouco depois, entrou para a universidade de Oxford, onde pelo meio de altos e baixos académicos e sociais e de algumas hesitações, acabou por desistir da ideia de ser advogado e decidiu ser padre. Em 1825 foi ordenado na Igreja de Inglaterra e no ano seguinte foi nomeado Tutor em Oriel College. A vida universitária permitiu-lhe ir continuando a aprofundar os temas que lhe interessavam. Newman, além de ser um leitor voraz, escreveu muito. Os seus sermões em Oxford são ainda hoje uma leitura rica e surpreendente. Depois de uma viagem pelo mediterrâneo e a Roma, onde adoeceu gravemente, Newman começa, com John Kemble e outros intelectuais aquilo que viria a ser conhecido por“Oxford Movement”.
A polémica gerada pelos escritos do grupo, especialmente os Tracts for the Times, sobretudo o famoso “Tract 90”, valeu-lhe inúmeras críticas e Newman passou de padre da moda em Oxford, a ser olhado com alguma desconfiança, acabando mesmo por sair da cidade e recolher-se em Littlemore. Por essa altura, e como que para confirmar a humilhação, a leitura exaustiva que, entretanto, fez dos textos dos Padres da Igreja começou a levantar dúvidas sobre a Igreja de Inglaterra. Juntamente com alguns membros do Oxford Movement, Newman tinha proposto que a Igreja Anglicana seria uma espécie de Via Media entre o Puritanismo, que segundo eles, rejeitava tradições, e o Catolicismo Romano, que as corrompia. Deste ponto de vista, apenas a Igreja de Inglaterra seria verdadeiramente católica, no sentido original da palavra, que remete para a universalidade. Ora é precisamente esse estatuto de Via Media que Newman se vê a questionar. Para a justificar, Newman estudou profundamente a história da Igreja. Mas esse estudo acabou por conduzi-lo a um caminho diferente. Em 1845, com 44 anos, John Henry Newman foi recebido na Igreja Católica, e fez de si próprio um “fora da lei”, nas suas próprias palavras.
Ficou famosa a passagem da carta ao duque de Norfolk em que Newman explica que a consciência é a apreensão da lei divina pela mente, uma visão que admite ser “muito diferente da perspectiva vulgar, tanto da ciência como da literatura, e da opinião pública dos dias de hoje”. Segundo ele, a consciência é mais a voz de Deus do que uma criação do homem.
A conversão de Newman caiu como uma bomba em Oxford e exigiu-lhe um novo início. Várias amizades de muitos anos ficaram de rastos, teve de deixar a confortável posição que tinha na Universidade e, querendo continuar a ser padre, teve de voltar a estudar. Mesmo entre os católicos era, a princípio, tido como um estranho, um “estrangeiro”. Depois de abandonar a sua vida anglicana, encontrou no Oratório o equilíbrio que desejava entre o cuidado pastoral e o estudo, e, depois de uma passagem pela Irlanda para aí estabelecer e conduzir uma Universidade Católica, regressou a Inglaterra e fundou o Oratório de Birmingham, onde viveu até à sua morte em 1890, escrevendo, ensinando, cuidando das almas e atendendo os pobres. Depois da publicação da Apologia Pro Vita Sua, em que respondeu a acusações que lhe tinham sido feitas de falta de seriedade e preocupação com a verdade, Newman conseguiu voltar a atingir a credibilidade intelectual que anteriormente já tinha assegurado em Oxford, sendo reconhecido como um importante teólogo católico. Continuou sempre a escrever muitíssimo, assistiu ao concílio Vaticano I. Em 1879, foi criado cardeal pelo papa Leão XIII.
Um punhado de parágrafos não consegue de todo captar nem o talento literário, nem o profundo amor à verdade, ou sequer o gozo intelectual da discussão de ideias e do estudo, e nem muito menos a generosidade e benevolência que lhe reconheciam. Diz-se que quando lhe chamavam Santo, Newman respondia que os santos não são homens das letras e que ficaria contente de engraxar sapatos dos santos “se usarem graxa no paraíso”. A vida de Newman foi uma incansável busca por uma união cada vez mais estreita com Deus, em todos os níveis, e talvez esse possa ser o primeiro traço a reter. Newman foi um intelectual, um homem do pensamento, mas antes disso, um homem de oração. Esse é, na verdade, o centro da sua história, a partir do qual se compreendem tantas mudanças que, afinal, apenas serviram para que pudesse continuar a ser ele próprio, e de uma forma cada vez mais plena. As suas Meditations and Devotions são uma excelente porta de entrada directa para este centro. Como o é também o lema que Newman escolheu como cardeal – Cor ad cor loquitur, o coração fala ao coração. Porque a verdade não é um exercício meramente calculístico ou recreativo, que exercita o pensamento sem comprometer. A verdade é para o coração, é para o homem todo.
Também famosas e hoje muito pertinentes são as suas reflexões sobre a consciência. Ficou famosa a passagem da carta ao duque de Norfolk em que Newman explica que a consciência é a apreensão da lei divina pela mente, uma visão que admite ser “muito diferente da perspectiva vulgar, tanto da ciência como da literatura, e da opinião pública dos dias de hoje”. Segundo ele, a consciência é mais a voz de Deus do que uma criação do homem.
A vida das ideias e o desenvolvimento da doutrina na Igreja, bem como o papel dos leigos foram outros dois assuntos aos quais Newman se dedicou e que têm ecos até hoje. Merecem ser considerados com toda a atenção pelos que se interessarem. A obra de Newman está toda online, pronta a ser lida, mastigada, desafiada, riscada e sublinhada.
O também ensaísta católico inglês Gilbert Keith Chesterton escreveu um dia que os santos são como antídotos para os venenos dos seus tempos. Que Newman o foi para o século XIX em Inglaterra é História. Mas mesmo hoje precisamos de um santo assim, porque mais do que do Twitter ou do Instagram, precisamos de saber que é possível viver em profundidade este amor à verdade, não fugindo à dificuldade intelectual, nem à discussão séria e honesta, nem ao estudo dos fundamentos, precisamos de nos relembrar que as coisas são muitas vezes mais complicadas do que parecem, mas é também isso que as torna belas, e de que não podemos ser donos da verdade, podemos ser possuídos por ela. Mais do que extremar-nos entre a hipótese de uma doutrina rígida, imóvel e morta, e a arbitrariedade de um subjectivismo que se encerra em si mesmo e confunde liberdade com preguiça, precisamos de recordar a importância decisiva da consciência, entendida como “presença de Deus” e, portanto, da sua formação à luz da autoridade de Cristo e da sua Igreja. Precisamos da coragem de mudar, para permanecer. Precisamos de aprender a deixar-nos conduzir, para saber andar, e de seguir aquela luz terna e suave.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.