O modus vivendi da sociedade atual afasta-nos da consciência da realidade e do foco no essencial. O conhecimento e a prática do mindfulness podem permitir-nos uma melhor vivência da interioridade.
Este artigo desenvolve-se em três passos: 1. “Rapidación”, enquanto modus vivendi atual; 2. A importância do “mindfulness”, enquanto procura de um maior equilíbrio interior; 3. A pertinência da perspetiva antropológica bíblica judaico-cristã, exemplificada com Pedro Arrupe, Avrilia Papayanni e Etty Hillesum.
Rapidación
O Papa Francisco utiliza o termo “rapidación” para caracterizar o estilo de vida atual. Saltamos da cama e aprontamo-nos para sair a um ritmo que justificaria que fossemos autuados por excesso de velocidade. Vivemos uma existência em que quase nos comportamos como autómatos. As tarefas que é suposto irem hoje a despacho, ontem já seria tarde. Tudo se tende a processar a um ritmo quase infernal: no trabalho, nos mercados, no desporto, na comunicação social, as próprias modas. Sentimo-nos regressar ao tempo do cinema mudo, em que a aceleração da projeção do filme tinha um efeito trágico-cómico.
Este ritmo acelerado acaba por se tornar uma espécie de adição/dependência. Vivendo a este ritmo, experimentamos mais estímulos por unidade de tempo, criando assim a ilusão de maior felicidade e realização pessoal. Em contrapartida, no meio deste frenesim, os espectadores desempregados ou enfermos experimentam a mais completa inutilidade.
No grego bíblico existem dois termos para designar o tempo: cronos, o tempo dos relógios, e kairos o tempo plenitude. Tendemos a confundir velocidade e excesso de estímulos com kairos quando, de facto, ainda permanecemos no registo do cronos e do efémero ou precário. E assim vamos alimentando uma emoção ilusória, que no curto prazo nos impede de despertar e tomar consciência de que tudo continua exatamente na mesma, senão mesmo pior.
A necessidade de nos focarmos no interior de nós mesmos conduz à tomada de consciência dos nossos estados mentais e espirituais.
Mindfulness
Esta palavra de origem inglesa, cujo sentido provem de práticas contemplativas orientais, é traduzida como a atenção plena ou consciência plena ao/do aqui e agora, isto é, focar-se no momento presente com toda a atenção e cuidado e sem julgamento.
A necessidade de nos focarmos no interior de nós mesmos conduz à tomada de consciência dos nossos estados mentais e espirituais. Através do exercício da atenção plena ao presente, o aqui e agora, somos impelidos a desligar do piloto automático ao qual a “rapidación” nos traz ligados. Não só nos desligamos do frenesim do dia a dia, como nos tornamos cada vez mais atentos e conscientes ao que acontece e ao que se passa no interior de nós mesmos. Este caminhar consciente e focado na/da interioridade coloca-nos num estado mental aberto e de atenção consciente ao mundo exterior. Esta atenção e abertura conduzem-nos à ação intencional focada no presente. Deste modo a história pessoal e o caminho da interioridade vão-se harmonizando numa construção cujo sentido lhe advém do vivido em cada momento, tantas vezes designado como o “aqui e agora”. Através do mindfulness podemos mais facilmente, e de um modo intencional, escapar à “rapidación” que domina a sociedade atual e que conduz a um viver alienado do essencial. Importa ter consciência de que toda a nossa vida acontece agora, no presente e nele se realiza em plenitude.
Interioridade cristã
A vivência plena da interioridade cristã expressa-se nas ações concretas. E, dos muitos exemplos que podemos encontrar, escolhemos três que passo a apresentar. São retratos da vida de pessoas, com percursos diversos, cujas vivências convergem no e para o essencial. O que as move não é uma técnica nem mesmo um exercício/terapia que as faz estar mais inteiras e atentas ao instante presente. O que as move é sobretudo “a fé, à qual têm acesso por Nosso Senhor Jesus Cristo, assim como a esperança que não engana, porque o amor de Deus foi derramado nos seus corações pelo Espírito Santo que lhes foi dado” (Rm 5, 1-5).
O que as move não é uma técnica nem mesmo um exercício/terapia que as faz estar mais inteiras e atentas ao instante presente. O que as move é sobretudo “a fé, à qual têm acesso por Nosso Senhor Jesus Cristo, assim como a esperança que não engana, porque o amor de Deus foi derramado nos seus corações pelo Espírito Santo que lhes foi dado”.
O primeiro é retirado da vida de Pedro Arrupe (1907-1991). Dia 6 de agosto de 1945. São oito horas e quinze minutos da manhã. Nos arredores de Hiroxima (cidade com 400.000 habitantes), Pedro Arrupe esteve quase duas horas de olhos fechados, imóvel, sentado à japonesa e descalço, a rezar a oração matinal numa capela cristã. Arrupe é um missionário jesuíta, no Japão. De 1965-1981, Pedro Arrupe virá a ser o Padre Geral, assumindo assim o governo da Companhia de Jesus dispersa pelo mundo.
Enquanto estudante universitário, em Madrid, Arrupe distinguiu-se como brilhante aluno de medicina, mas interrompeu o curso para entrar na Companhia de Jesus (1927). Quando, no final da sua formação de jesuíta, foi enviado para o Japão (1938), teve o cuidado de se deixar passar por um processo de inculturação, tendo cultivado nomeadamente três disciplinas zen: a cerimónia do chá, a arte de desenhar a pincel e o tiro com arco. Em 1945 desempenhava a missão de Mestre de Noviços sendo desse modo responsável pela primeira etapa da formação dos jovens japoneses que se propunham ingressar na Companhia de Jesus.
Eram oito horas e dezasseis minutos da manhã quando rebentava a primeira bomba atómica da História. As palavras são totalmente impotentes para traduzir o inferno em que inesperadamente se converteu a cidade. A comunidade de jesuítas situava-se na periferia, pelo que não foi gravemente atingida. Num ápice Pedro Arrupe transformou o edifício do noviciado numa enfermaria improvisada com 150 camas. Não dormiu nada naquela noite nem nos dias que se seguiram, mantido por uma força interior que lhe permitia entregar-se às vítimas da catástrofe (Pedro M. Lamet, Pedro Arrupe, Testemunha do século XX, Profeta para o século XXI).
Num ápice Pedro Arrupe transformou o edifício do noviciado numa enfermaria improvisada com 150 camas. Não dormiu nada naquela noite nem nos dias que se seguiram, mantido por uma força interior que lhe permitia entregar-se às vítimas da catástrofe.
Um segundo retrato é de Avrilia Papayanni (1897-1992). Dos três certamente o menos conhecido. É a segunda mulher a inscrever-se numa universidade grega. Em 1932 sente que Cristo a chama a trabalhar em instituições que acolhem pessoas com deficiência. Estuda fisioterapia em Inglaterra. Em 1947 abre um centro de fisioterapia em Atenas. Conjuga os seus serviços com o hesicasmo. Trata-se de um método ascético que constitui o ponto mais alto da espiritualidade ortodoxa. Serve-se sobretudo da “oração de Jesus” ou “oração do coração”. O termo provém do grego hesychia, que significa silêncio e paz, fruto da união com Deus.
Em 1955, Cristo chama-a para a Índia, onde oferece os seus serviços a leprosos e pobres. Constata, com mágoa, que muitos ocidentais vão em busca do oriente mostrando total desconhecimento das suas raízes cristãs mais genuínas. Em 1959, novo chamamento, desta vez a passar onze meses de vida eremítica nos Himalaias, seguido do chamamento à vida monástica (Mosteiro de S. Lázaro, em Betânia, Israel). Recebe um novo nome, Gavrilia. A partir de 1979 é eremita urbana em Atenas. Dedica metade do dia à oração e, na restante metade, aconselha e cura um fluxo contínuo de pessoas que a procuram (Mother Gavrilia, The ascetic of love).
Um terceiro e último retrato, Etty Hillesum (1914-1943). Judia holandesa que nasce numa família não praticante. Especializou-se em literatura russa e alemã. Em 1941, na segunda guerra, já durante a ocupação alemã, recorre a um psicólogo, Julius Spier. Este inicia-a na leitura da Bíblia e receita-lhe diariamente meia hora de exercícios respiratórios e meia hora de oração. Etty define-se a si mesma como “a jovem que não se sabia ajoelhar”.
É sobretudo a experiência de Deus, que ela encontra no fundo de si mesma, que lhe vai rasgar um novo horizonte. Fruto desta experiência interior, Etty corta com os requintes no consumo e passa a levar uma vida casta. Mostra uma capacidade acrescida em se maravilhar com a natureza e em ser solícita ao apelo dos mais fragilizados. Em Etty deparamo-nos com uma boa disposição constante que lhe brota de dentro e se traduz no refrão recorrente: “A vida é bela!” Os amigos procuram ajudá-la a fugir para um país aliado. Mas, em vez disso, corresponde ao chamamento que Deus lhe dirige, para acompanhar a seu povo até ao Shoah, onde sabe previamente que a aguardam as câmaras de gás e os fornos crematórios. Vai-se identificando progressivamente com a pessoa de Jesus. Morre em Auschwitz em 1943 (Etty Hillesum, Diário, 1941-1943).
Fotografia: Rodrigo Cabrita
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.