Maus-tratos escolares, não!

Com o prolongamento da escolaridade obrigatória salta ainda mais à vista a violência institucionalizada nas nossas escolas, bem como os maus-tratos que estas praticam.

1. As escolas e os professores queixam-se frequentemente da falta de apoio das famílias às crianças, bem como dos efeitos negativos sobre a aprendizagem escolar de vários problemas socioculturais de contexto, como a pobreza, o desemprego, o desinvestimento na educação escolar, o Ministério e as suas normas, as mudanças permanentes de políticas, etc. E fazem-no com razão, pois são numerosos e complexos os problemas sociais e políticos que influenciam e dificultam o trabalho escolar.

Mas também é verdade que escolas e professores, muitos deles cansados e sem esperança, olham menos vezes criticamente para si mesmos, para as suas práticas concretas, os seus métodos, os seus gestos e as suas palavras, evitando colocar-se na linha reta dos problemas e da sua solução. Ou seja, diante de um dado contexto e de uns alunos concretos, como adaptar e realizar o que é preciso ser feito para promover uma educação de qualidade, formando bons alunos e bons cidadãos.

Acontece que Portugal, por lei do Parlamento, decidiu que todos os portugueses, sem exceção, não podem fazer outra coisa na sua vida, até aos 18 anos, que não seja frequentar uma escola. O ónus foi colocado sobre cada cidadão e não sobre a comunidade e o Estado, que podem continuar a “assobiar para o ar” (bem podia ter sido de outro modo, mas este não é o nosso tema).

Sabemos bem o quão difícil é cumprir este desígnio nacional, pois, por um lado, para muitos adolescentes e suas famílias não é nada claro o porquê e o para quê de ter de permanecer tantos anos na escola e, por outro, as instituições escolares não se adaptam facilmente a este novo mandato e apresentam-se ainda demasiado normalizadoras, rígidas, fabris e impessoais, acabando por abandonar à sua sorte uma parte dos alunos que lhes são confiados.

2. Acolher todos e cada um, numa escola democrática e justa, é aceitar a máxima diversidade de capacidades, de conhecimentos, de expectativas, de interesses, de atitudes. Esta diversidade inclui ensinar e educar os que se sentem mal na escola que lhes é oferecida e até quem simplesmente não quer andar na escola nem quer aprender o que esta lhe quer ensinar.

E isso é bastante complexo: exige alterar a missão de cada instituição, e logo o respectivo plano estratégico, prioridades, plano de atividades, métodos de trabalho, ações de capacitação dos educadores, espaços físicos, etc (quantas o fizeram?).

Quando isso não acontece, a obrigatoriedade de frequência escolar, uma medida que foi adotada como promoção de um bem comum e numa perspectiva positiva, pode constituir ao mesmo tempo uma enorme violência sobre as crianças e jovens, sobretudo quando:

– elas e eles vivem situações muito difíceis, familiares e pessoais;

– a escola nada faz de substancial para mudar a sua proposta educativa, insistindo em aulas e mais aulas, sempre ao mesmo tempo, do mesmo modo, ao mesmo ritmo, como sempre fez e como se todos os cidadãos fossem iguais.

Era preciso renascer institucionalmente!

De outro modo, esta violência institucional espalha-se e entranha-se em quantos se sentem mal na escola e não podem fazer outra coisa nas suas vidas que não seja mesmo estar no lugar onde não querem estar. Era mais do que previsível que esta violência viesse a aumentar e que as escolas se deveriam ter preparado para dar este salto, que não é só embebido de legalidade, mas é também uma questão moral, sobretudo de justiça.

É, evidentemente, o que decorre do cumprimento da lei. Mas, neste caso, tem de ser mais do que isso: exige a prática constante da justiça, sob pena de a lei constituir uma farsa.

3. Sabemos bem que, nem sempre, as escolas estão disponíveis para acolher todos e cada um, alterando substancialmente orientações, prioridades, procedimentos, métodos e processos educativos, etc. E… uma parte dos alunos acaba mesmo por abandonar a escola e ser por ela rejeitada, apesar de ainda estarem abrangidos por essa “escolaridade universal e obrigatória”.

A Rosa, no sexto ano, começou a desinteressar-se de estudar, reprovou duas vezes, depois passou para o sétimo e voltou a reprovar e abandonou a escola, “não estava lá a fazer nada, não me apetecia ir às aulas”. E diz: ”as professoras estão sempre a falar, nós a escrever nos cadernos, é uma seca!”

O Mário quando começou a ter problemas em sua casa, com o seu pai alcoólico, um irmão com deficiência e ambos os pais desempregados, sem dinheiro para pagar a renda de casa, após a conclusão do 1º ciclo do ensino básico e na sequência lógica da exteriorização da enorme insatisfação e desespero que sentia, teve “como prémio” escolar quatro reprovações seguidas no 6º ano de escolaridade, com duas mudanças compulsivas de escola pelo meio! Até abandonar a escola.

Ao passar para o 5º ano, como era “muito hiperativo”, “estava sempre a mexer em tudo”, o João começou a ter problemas na sala de aula, teve muitas ordens de saída e vários processos disciplinares, mas nada mudou, reprovou 3 vezes no 5º e uma no 6º; tudo piorou e acabou por ser expulso e foi para o bairro, tornando-se mais um “invisível” da cidade.

À Maria, o seu irmão foi preso, a mãe entrou em depressão, ela ficou em casa para ajudar. Ela já tinha reprovado por falta de assiduidade. Durante quatro anos ficou em casa e nunca ninguém lhe ligou, da escola ou da CPCJ.

O Ivo, até ao 5 ano estudou bem, depois mudou de escola e… “descambei”, “não gostava das matérias e estar ali a levar com aquilo todos os dias não é bom”; então reprovou quatro vezes no 6º ano, “ia à escola, mas não ia às aulas”, “era muito tempo fechado numa sala de aula”. E abandonou a escola.

4. A minha boca não pode calar a injustiça exposta nas feridas profundas que as escolas cavam na vida destes adolescentes, que conheço e acompanho, com equipas de educadores, no Arco Maior. Temos mesmo de falar uns com os outros sobre os maus-tratos escolares. Não, não foi só a família que foi negligente, não, não foi só o desemprego que afetou pai e mãe, ou a droga que consumiu lentamente as vidas dos pais; não, não foi apenas isso, foi muito mais do que isso: a escola atou uma mó ao pescoço de tantos adolescentes “em risco e em perigo”, que apenas precisavam de ser ouvidos, compreendidos, muito antes de aprenderem o que quer que seja, pois precisam de um pouco de esperança no meio de tanto desespero, de se libertar um pouco da colagem a essas desgraças ou, pelo menos, de contar com quem os apoie a fazer outras coisas e os ajude a aliviar os fardos das suas vidas já muito pesadas – e ainda são tão crianças!

Uma mó feita de ordens permanentes de saída da sala de aula, de medidas disciplinares sucessivas, de suspensões e outros castigos, de retenções sucessivas, feita da repetição da mesma rigidez curricular até à exaustão, da canalização para “grupos especiais”, para turmas de “inensináveis” e “incorrigíveis”, mesmo que isso se chame “apoio educativo” ou “estratégias de inclusão”, feita de mudanças compulsivas de escola e feita até de não haver uma escola pública, na cidade, que os queira acolher.

A criança e o adolescente não aguentam esta violência institucional e a mó escolar leva-os para onde a escola, a certa altura, quer que eles verdadeiramente vão: para a margem, para um lugar onde não incomodem, que não sejam nem salas de aula, nem escolas.

E mais! Como eles não podem não ir à escola, pois estão legalmente obrigados a estar matriculados numa escola até aos 18 anos, o que quer isso signifique de humanidade ou de crueldade, são eles que ficam em falta diante de toda a sociedade e têm de passar à invisibilidade social, nos seus pobres bairros.

Esta dupla penalização pode ser de uma crueldade enorme e muitos sabem que ela existe, praticam-na, mas de um modo cada vez mais naturalizado, quase inocente, como se tivesse de ser assim mesmo e não houvesse outros modos mais humanos de educar e de ser escola “universal e obrigatória”.

Tendo institucionalizado a infância e a adolescência dentro de escolas, não temos o direito de institucionalizar a violência e os maus-tratos escolares.

Como estamos a corromper a tão nobre missão da educação escolar!

Numa ética do cuidado, a escola deve e pode acolher todos e promover cada um. Não há nada que torne isso impossível. Só temos de inverter o sentido do caminho que conduziu à injustiça escolar, percorrendo o da justiça.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.