Mais Artes e Humanidades

A dificuldade que temos em definir artes e humanidades não é acidental. A imagem que encontro (nada original) que mais facilmente expressa o que quero dizer é a da rede dos trapezistas no circo, ou melhor, a da falta da dita rede.

Para o Zebra

 

Maxine Green, em 1977, num argumento a favor das artes e humanidades na educação, lembrou um texto de Kierkegaard, no Postscriptum Não-científico Conclusivo às Migalhas Filosóficas, com o qual também gostava de começar aqui. Nesse texto, o narrador/autor, Johannes Climacus, conta ao leitores o dia em que, já velho, pelo menos de acordo com os seus padrões, descobriu finalmente o que lhe cabia ser, o seu lugar na sociedade: sentado num jardim, de charuto na boca numa espécie de sonho acordado, Climacus concluiu que o traço comum a toda a gente célebre e celebrada à sua volta, a toda essa gente prática que tinha conseguido de uma maneira ou de outra vingar na vida, desde os engenheiros aos professores, desde os inventores aos políticos, era o facto de estarem comprometidos com um mesmo fim: tornar a vida mais fácil. Impedido, por feitio, personalidade ou mania, de facilitar o que quer lhe caísse nos braços, Climacus soube, ao acender outro charuto, que lhe cabia, com o mesmo entusiasmo benfazejo que via à sua volta, abraçar a tarefa contrária.

Ora, como bem viu Green, podemos perfeitamente usar este texto, e o contraste que nele está em causa entre a tarefa de facilitar e a de dificultar a vida para pensar sobre o que é e o que deve ser a escola e a educação. Talvez haja alguma resistência em aceitar que a escola possa ter uma função tão pouco simpática aos nossos ouvidos modernos. Mas não nos lembramos disso quando concordamos em uníssono nas virtudes do método socrático, ou na importância do pensamento crítico para a formação das futuras gerações. Sócrates não fez outra senão dificultar a vida toda gente (sabemos bem como acabou), e quanto ao múnus de criticar, só costuma ser bem aceite quando tem a ver com terceiros e se atenha ao mundo das abstrações.

Compreensivelmente, e com razão, louvamos quem nos tire o peso da vida, seja através da tecnologia, seja através da política, seja através de que outro meio for; mas as dificuldades não têm só má imprensa: que diria alguém que chegasse ao ginásio e descobrisse que, por simpatia, lhe tinham retirado toda aquela dificuldade cuidadosamente programada? Que dizemos nós, quando nos atiram uma solução fácil de pacote para cima de um problema que sabemos ser difícil de resolver? Que nome damos a alguém incapaz de ficar perplexo, imóvel, banzado diante da morte, do sofrimento, aliás, alguém incapaz de uns segundos de consciência aguda de que de estar vivo é um mistério insondável? Estaremos prontos para aceitar assim sem mais nem menos o nobre propósito de tirar todo o peso, todos os obstáculos, todas as dificuldades da vida? Queremos que seja essa a função essencial da educação? Queremos tornar acessível o conhecimento a todos? Não será que nesse caso o que se tornará acessível acaba por não ser propriamente conhecimento? Não será mais sensato convidar todos para um caminho difícil e longo, que podemos e que queremos fazer juntos, e que valha a pena ser percorrido, mesmo que fiquemos ainda longe da chegada, embora certos da distância que nos separa da partida?

A conversa sobre facilitismo e exigência em educação é interessante; mas o que aqui está em causa é de um âmbito diferente. É notório o gosto pelo humor de um tempo que quer ao mesmo tempo ser socrático e chamar facilitadores àqueles a que, sem saber porquê, ainda chama professores, mas sinceramente isso interessa-me pouco. Gostava de me concentrar aqui neste modo de valorizar as coisas que tende a concentrar o valor no movimento de retirar obstáculos e dificuldades  e que, por muito justificado que seja em muitos campos diferentes, pode não aplicar-se ao caso da escola e da educação.

Creio que é essa boa intenção que nos faz ver a escola como o tempo e o espaço que deve habilitar as gerações futuras para um determinado desempenho profissional e/ou social. Eis a grande e nobre função social da escola de que se fala por todo o lado, e que parece ser a única forma verdadeira de justificar a sua real importância na sociedade: a escola será tanto melhor quanto mais eficazmente preparar os alunos para o mundo tal como é, ou para um futuro que julgamos que será de determinado modo com critérios e justificações que só podem ser de hoje. Uma escola bem oleada, uma escola pronta para derrubar as suas paredes e revisitar o seu currículo sempre que o momento o ditar, uma escola com prestígio, capaz de vingar nos exames nacionais, e que permita uma taxa de empregabilidade como deve ser. Mesmo uma escola muito exigente e competitiva que se compreenda a si mesma essencialmente como um mecanismo de formação profissional, por um lado, e de seriação de candidatos para o mercado laboral, por outro, é ainda uma escola vitalmente comprometida com a nobre tarefa de facilitar a vida aos seus alunos.

Não nego nem o lugar, nem a importância que todas estas coisas têm na escola, mas questiono que nos detenhamos aí quando queremos pensar e sonhar no que uma escola deve ser. Aliás, o ponto onde queria chegar é mais exatamente o da  relação que creio existir entre o ensino e a aprendizagem das artes e as humanidades e uma forma alternativa de valorizar a escola, como o lugar e o tempo para lidar com a dificuldade, a resistência, a complexidade, o problemático, etc.

Talvez haja um lugar, e até talvez um lugar cimeiro, para as artes e para as humanidades numa escola facilitadora, no sentido de que falava. Sinceramente, duvido. Mas concedo que é possível. O que me parece muito difícil de negar é que tanto as artes como as humanidades tipicamente operam fora dessa lógica, e que nesse sentido, a sua importância e o seu lugar na escola se tornam pelo menos mais claros quando aceitamos que a função da escola pode ser mais semelhante à de Climacus. Deixem-me explicar.

Parece-me que a dificuldade que temos em definir artes e humanidades não é acidental. A imagem que encontro (nada original) que mais facilmente expressa o que quero dizer é a da rede dos trapezistas no circo, ou melhor, a da falta da dita rede. Criar e pensar são operações para as quais, por definição, não pode haver uma rede: estamos por nossa conta e risco, é o valor do que está em causa seja na criação seja no pensamento só ilusoriamente é exterior ao próprio exercício de criar ou pensar. Evidentemente, há sempre algum tipo de balizas exteriores que podem orientar mais ou menos o trabalho em causa; mas, nas artes ou nas humanidades, ao contrário do que acontece na maior parte das outras disciplinas, incluindo algumas tipicamente humanísticas quando querem transformar-se em “ciências sociais e humanas”, essas regras ou balizas não constituem nem uma essência, nem um método próprio fixo e inquestionável, e, portanto, rapidamente se transformam mais em perguntas a que há que responder do que em indicações claras de modo de proceder. Para dizer rápido, tanto nas artes como nas humanidades, é muito difícil fugir ao todo. Essa dificuldade estrutural e essencial, aliás, até mais do que um objeto de estudo, um método, ou áreas temáticas fixas, talvez possa ser considerada um dos traços para uma definição quer do campo da arte, quer do campo das humanidades.

Criar e pensar são operações para as quais, por definição, não pode haver uma rede: estamos por nossa conta e risco, é o valor do que está em causa seja na criação seja no pensamento só ilusoriamente é exterior ao próprio exercício de criar ou pensar.

No fundo, isto quer dizer que nas artes e nas humanidades, não por acaso, estamos, para o bem e para o mal, mais livres do que na maior parte das outras disciplinas. Ora, hoje tendemos a ver essa liberdade como um prazer acrescido, ou, o que é pior, como uma espécie de facilidade: estaríamos diante da possibilidade de fazer o que nos apetecesse, da impossibilidade do erro, etc. Vem daí aliás a ideia curiosa de que haverá menos exigência e rigor nestas disciplinas no que noutras.

Ora, parece-me que a realidade é exatamente a contrária. O exercício de criar, dizer, pensar ou expressar alguma coisa significativa só parece fácil se fizermos uma de duas batotas: se fixarmos um método pronto a usar, como fazem as ciências, ou se decretarmos à partida que não há qualquer interesse vital nessa tarefa. Se não pudermos dispor de tal método, por um lado, e se houver um tal interesse, por outro, a liberdade que parecia fácil e agradável, torna-se na verdade uma dificuldade muitíssimo séria.

Para ter ideia dessa dificuldade, lembremos o que escreveu Romano Guardini, ao falar do artista, e que também se aplica, adaptando alguns pormenores, a quem se dedique às humanidades: “Na arte ele só busca a solução do conflito íntimo que o corrói, só ambiciona trazer ao mundo da representação, à luz clara da expressão plástica, a vida superior que entrevê em sonho e de que a realidade lhe não oferece senão uma aproximação. Não pretende outra coisa que não seja libertar, exteriorizando-os, o seu ser e o seu sonho, senão projetar exteriormente, na forma, a sua verdade interior”.

Pensar e criar são exercícios nos quais a forma não pode estar fixada de uma vez por todas; ela é, podemos dizer, exatamente aquilo que se trata de encontrar; a forma não é o ponto de partida, mas o ponto de chegada; e toda a dificuldade está em saber como chegar aí sabendo que aí se está a chegar, sem ter nada senão “a nossa verdade interior” para nos guiar.

Estar, em última instância, entregue a si próprio, ter-se a si próprio como critério e sentir-se chamado, impelido, obrigado, a ver e a expressar cada vez mais claramente o que é e o que deveria ser verdade, é a esse tipo de dificuldade assustadora e vertiginosa, mas ao mesmo tempo, verdadeiramente empolgante e profundamente tocante, que podemos ser introduzidos na casa das artes e das humanidades.

Estar, em última instância, entregue a si próprio, ter-se a si próprio como critério e sentir-se chamado, impelido, obrigado, a ver e a expressar cada vez mais claramente o que é e o que deveria ser verdade, é a esse tipo de dificuldade assustadora e vertiginosa, mas ao mesmo tempo, verdadeiramente empolgante e profundamente tocante, que podemos ser introduzidos na casa das artes e das humanidades.

Há quem diga que as artes e as humanidades são formas de humanização. O assunto é complicado, mas não acredito que um artista, ou um estudante de humanidades tenha qualquer tipo de vantagem diante dessa outra suprema dificuldade que é tornar-se verdadeiramente humano. Ainda assim, acredito que a escola tem a ganhar em assumir-se mais como um lugar para as artes e humanidades, principalmente porque aí tem uma forma de concretizar a sua natureza socrática, problemática e crítica. Seria bom para todos que a educação, julgo eu, não alimentasse a ilusão de que o tempo que nos foi dado é para ocupar saltando de nível em nível num caminho anónimo decretado por alguém algures; seria bom para todos que o tempo na escola nos acordasse para o facto de sermos livres, para o facto de termos de ser nós próprios a decidir entrar na dança com que lidaremos com o que nos cabe viver; seria bom que ao menos na escola estivéssemos, por isso, o mais abrigados possível da pressão e das exigências que as necessidades trarão a seu tempo.

E assim, ainda que estas disciplinas não ensinem (se é que isso pode ser ensinado) a compaixão do bom samaritano, estou convencido de que os pequenos ensaios de liberdade e de dificuldade a que nos convidam podem ser um bom treino para fugir da superficialidade e do servilismo do tempo presente. E ainda estou mais convencido de que esses pequenos ensaios nos podem ajudar a passar a ver a escola como um lugar onde cresce tanto a nossa fome do sonho quanto o hábito de não desistir de o agarrar, de o dizer e de o mostrar, sempre que nos descobrimos cansados e ainda longe de o alcançar.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.