É conhecida a história de Santo Inácio que, depois da batalha de Pamplona que quase lhe esmagou a perna, se viu acamado e imóvel em casa e sem nada para ler. Percebo bem o pobre Iñigo, que só queria passar o tempo com um romance de cavalaria, e imagino a sua desilusão quando lhe dizem que lá em casa, só há uma Vita Christi ou um livro da vida dos Santos. Deve ter sido mais ou menos como se alguém hoje, confinado com um teste positivo para Covid 19, pedisse um computador para ver as últimas temporadas da Guerra dos Tronos (digamos que ia na quinta temporada e ainda não sabia o que aí vinha, para o exemplo funcionar…) e lhe dissessem que lá em casa, só existia uma série dos anos 80 de 8 episódios sobre os Evangelhos.
Ainda assim, Inácio foi pegando nos livros e foi lendo. Para mim, foi sempre um tanto misterioso que o início da sua autobiografia sublinhe este episódio de leitura e o ponha como princípio de tudo o que aconteceu a seguir. Curiosamente, conhecemos também muito bem a história de outro espanhol famoso (embora, em rigor, a categoria não se aplique sem uma boa dose de anacronismo, já que Inácio era basco e Cervantes castelhano) que leu romances de cavalaria, não tendo a coisa depois corrido especialmente bem para ele… Tanto Inácio como D. Quixote se deleitavam em imaginar-se em grandes feitos por belas damas, mas Quixote, talvez por falta de discernimento, não parou a tempo. Contudo, para os amigos de Inácio, “ir a Jerusalém, descalço e comendo só ervas” como ele sonhava fazer depois de ler sobre as aventuras mirabolantes dos Santos, deve ter parecido tão insano quanto nos parece a nós Quixote.
Contudo, para os amigos de Inácio, “ir a Jerusalém, descalço e comendo só ervas” como ele sonhava fazer depois de ler sobre as aventuras mirabolantes dos Santos, deve ter parecido tão insano quanto nos parece a nós Quixote.
Para pessoas interessadas em literatura, como eu, este início é fascinante, habituada como estou a ler vários tipos de livros (vidas de santos incluídas), sem que nada de especial pareça acontecer depois. Reconheço, claro, que as histórias que ouvi e li – algumas, pelo menos; as melhores, talvez – fazem hoje parte daquilo que sou e, em certa medida, do meu olhar sobre mim e sobre o mundo.
Ironicamente, hoje parece haver uma certa tendência para se pensar que somos todos mais como Quixote do que como Inácio, na nossa incapacidade não só de distinguir realidade de ficção como de discernir aquilo que verdadeiramente nos torna felizes. Quando se julga que é preciso incluir avisos de “conteúdo explícito ou insultuoso” em clássicos da literatura ou da filosofia tão insuspeitos e difíceis como as Críticas de Kant, ou censurá-los até que possam devidamente contextualizados, aquilo que se está admitir supõe que estas obras terão uma espécie de perigoso poder de toldar o raciocínio ou o sentido de justiça.
Ideias distintas sobre o papel – ou o poder – que a literatura concretamente, mas as artes e as humanidades em geral, podem ter no desenvolvimento espiritual, moral e político dos indivíduos e da sociedade parecem estar em jogo. Passando por cima de uma conversa mais demorada sobre este assunto, parecem-me especialmente relevantes para estes novos anos 20 as vidas e obras de alguns escritores da segunda metade do século passado. Em comum têm, entre outras coisas, o facto de serem católicos e de terem biografias pelo menos tão acidentadas como Inácio de Loyola, mas, provavelmente, com feitios bastante mais complicados – e a consciência disso. G.K. Chesterton, Flannery O’Connor, Thomas Merton, Dorothy Day, Evelyn Waugh, para dizer só alguns. Independentemente do que cada um pensasse sobre as razões por que escrevia, ou sobre as relações entre a sua obra, a sua vida e a sua fé, penso que há uma ideia que os atravessa a todos e que hoje é preciso quase gritar: que somos todos bastante piores do que aquilo que gostaríamos, e que o amor de Deus por nós não é menor por isso.
A uma época que parece julgar que uma absoluta perfeição moral – dentro de uma cartilha bastante específica e altamente questionável – é condição necessária para ser admitido no clube dos autores autorizados, com obras passíveis de serem lidas e admiradas, talvez seja bom ler sobre como se manifesta a Graça de Deus a pessoas que preferem ficar na cama, a assassinos de velhas irritantes, a potenciais monges que deixaram filhos ilegítimos noutro continente, a militantes anarquistas ou a famílias complicadas e cheias de relações duvidosas.
Por isso, a minha sugestão para este final de verão é que não se deixem assustar por alguns destes nomes estarem a ser retirados de salas de universidades americanas, e peguem nalgum livro de algum destes escritores. Nunca se sabe o que pode acontecer.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.