Laudato Si – um guia de sobrevivência no presente e no futuro

Encíclica indica o caminho que se deve trilhar para decidir a nível internacional; apela ao diálogo para concretizar novas políticas nacionais e locais; insiste no desígnio de pôr a economia ao serviço dos povos e noutro estilo de vida.

Faz este verão cinco anos que foi publicada e divulgada a carta encíclica Laudato Si. No presente contexto marcado por uma grave crise – de saúde pública, social e ambiental – a Laudato Si tornou-se um documento mais atual do que nunca que vale a pena revisitar. Vejamos três dimensões específicas da sua atualidade e acuidade.

Em primeiro lugar o facto de abordar transversalmente os problemas ambientais e humanos de uma forma integrada que sublinha a sua complexidade e aponta a sua dimensão ética. Escrupulosamente baseado em informação científica rigorosa e clara, o documento do Papa Francisco traça o retrato do gravíssimo estado em que se encontra esta nossa maltratada ‘casa comum’, fazendo apelo a uma tomada de consciência. E está lá tudo o que constitui a crise ambiental global contemporânea: o erro brutal de destruir a biodiversidade, que é fundamental ao equilíbrio ecosistémico, e também a base da produção de alimentos e de medicamentos. Está lá um apelo ao reconhecimento e valorização dos bens comuns. Está o desacordo face à privatização da água, recurso escasso e vital, que ‘não é uma mercadoria sujeita às leis do mercado’, mas um direito humano sem o qual outros direitos não se poderão exercer. Estão os oceanos e a necessidade de alterar os sistemas de governança dos bem comuns globais. Está a crítica à substituição da flora e floresta autóctones pelas monoculturas; está a desumanização das ‘monoculturas’ do betão em subúrbios abjetos. Estão obviamente as alterações climáticas: ‘mudanças inauditas de uma destruição sem precedentes’ se a atual tendência se mantiver e continuarmos tão dependentes dos combustíveis fosseis.

Estão também os abusos da lógica cega da ideologia neoliberal que se instalou; e a irresponsabilidade social e ambiental de muitas multinacionais que abusam, poluem e degradam sobretudo os países pobres; está lá a crítica à atual subjugação da Política à finança; e está a corrupção que nos corrói. É toda a problemática global – e não apenas ambiental – que é abordada a partir do ponto de vista da Humanidade e não do jogo cego dos mercados.

Estão também os abusos da lógica cega da ideologia neoliberal que se instalou; e a irresponsabilidade social e ambiental de muitas multinacionais que abusam, poluem e degradam sobretudo os países pobres; está lá a crítica à atual subjugação da Política à finança; e está a corrupção que nos corrói.

E isso abre para a segunda dimensão: a da equidade e da justiça. A encíclica aponta com clareza o modo como os problemas ambientais se ligam aos problemas das desigualdades, mostrando que não é possível pensar uns sem os outros pois o ciclo é vicioso: a degradação dos recursos vai de par com a degradação social e humana. E aponta essa ‘verdade inconveniente’ que há muito devia estar assumida e resolvida, que é a da inaceitável pobreza espalhada pelo mundo inteiro e da enorme responsabilidade política a todas as escalas. Aqui o Papa evidencia claramente a dívida dos países do Norte – pelo uso e abuso dos recursos naturais e pelo excesso das suas emissões fosseis – aos países mais pobres do Sul que já sofrem as consequências das alterações climáticas e que agora vêem a sua situação dramaticamente agravada pelos impactos do Covid-19. O problema da dívida – das ‘dívidas’ – está hoje mais do que nunca na ordem do dia e tem que ser assumida. Não se trata apenas de reequacionar a dívida, mas sim de a pagar objetivamente com: transferência de conhecimento e tecnologias limpas e apropriadas; apoios explícitos à capacitação; assistência técnica e manutenção dos recursos de sobrevivência (água, floresta, recursos marinhos, etc.). Como escreve o Papa: “é necessário que os países desenvolvidos forneçam recursos aos países mais necessitados para promover políticas e programas de desenvolvimento sustentável” (Laudato Si, 2015, pp. 42). Num mundo global e interdependente não se trata apenas de uma obrigação, mas de uma medida de segurança, uma espécie de investimento na nossa sobrevivência coletiva.

Desde logo, é necessário combater fortemente três entraves à implementação das soluções: a tendência para a negação dos problemas, a resignação acomodada e a confiança cega nas soluções técnicas.

A terceira dimensão a destacar é que a encíclica não se limita a diagnosticar; afirma que há soluções ao nosso alcance e por isso propõe um modelo de ação abrindo várias pistas de orientação para agir – do individual e local, ao coletivo e global. Desde logo, é necessário combater fortemente três entraves à implementação das soluções: a tendência para a negação dos problemas, a resignação acomodada e a confiança cega nas soluções técnicas. Isto valorizando simultaneamente a ciência e tecnologia, reconhecendo o papel central dos cientistas e de “usar a técnica, mas orientá-la e colocá-la ao serviço de outro tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais integral” (pp. 86), pois “a tecnociência, bem orientada, pode produzir coisas realmente valiosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano.”

Indica em seguida novas formas e fórmulas para repensar a economia e o progresso, desafiando-nos na busca de um desenvolvimento que seja sustentável – a ‘Ecologia Integral’. Nesta linha propõe o que hoje se designa como uma nova Economia Circular que constitui aliás um desígnio da União Europeia e que implica maximizar a eficiência no aproveitamento dos recursos, reutilizando e reciclando. Para o Papa “a resolução desta questão seria uma maneira de contrastar a cultura do descarte que danifica todo o planeta.” (pp. 22).

Depois a encíclica também reforça uma globalização de propósitos humanos que exige uma diplomacia ativa e influente e implica o reforço das Instituições Internacionais que considera indispensável serem “mais fortes e eficazmente organizadas” (pp. 130). Bem como os Acordos internacionais como projetos comuns para um mundo interdependente: “Torna-se indispensável um consenso mundial que leve a programar uma cooperação internacional no cuidado do ecossistema de toda a Terra – quem contaminar deve assumir economicamente os custos derivados (…). Os custos seriam baixos se comparados com os riscos das alterações climáticas.” (pp. 125).

Por fim sublinha a educação para a cidadania ambiental, pois toda a mudança depende da educação e da aprendizagem e é a capacitação que dá viabilidade à ação necessária. Uma cidadania que passa também por estimular o acesso à informação e uma regular participação da sociedade nas decisões às escalas nacional e local. Tal aponta para a importância de novos mecanismos de participação, novas metodologias, novos passos de civismo e a importância das redes comunitárias, nomeadamente nas Paróquias. Exatamente o oposto às funções manipulatórias das redes sociais e à criação de um mercado das consciências a que tristemente assistimos nos últimos anos.

Em suma, temos de evitar deixar às próximas gerações “demasiadas ruínas, desertos e lixo. O ritmo de consumo, desperdício e alteração do ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta que o estilo de vida atual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como aliás já está a acontecer periodicamente em várias regiões (…). A dificuldade em levar a sério este desafio tem a ver com uma deterioração ética e cultural que acompanha a deterioração ecológica (…)” (pp. 162).

De forma clara e simples, a encíclica indica o caminho que se deve trilhar para decidir a nível internacional; apela ao diálogo para concretizar novas políticas nacionais e locais; insiste no desígnio de pôr a economia ao serviço dos povos e na imperiosa necessidade de outro estilo de vida no caminho da paz e da justiça.

Lançada em 2015 os efeitos da encíclica têm-se feito sentir profundamente – tanto na vida científica como na vida política e cívica com vários movimentos a despontar reunindo várias sensibilidades católicas, e não só, um pouco por todo o mundo. E assim uniu um campo disperso, apesar de convergente, de sensibilidades ambientais e ético-políticas. Em Portugal refira-se a Rede ‘Cuidar da Casa Comum’ (https://casacomum.pt/) que a saudosa economista Manuela Silva lançou entre nós, inspirada justamente pela encíclica e que promove a Ecologia Integral aí proposta.

Cinco anos depois e sobretudo num momento de viragem e recomeço provocado pela pandemia em que tudo tem que ser repensado, a Encíclica Laudato Si mantém-se mais atual do que nunca. Neste sentido, o Vaticano lançou em Junho deste ano um ‘manual’ de aplicação da encíclica ’Laudato Si’ com mais de 200 recomendações em defesa da vida humana e do ambiente. O documento designado ‘A caminho para o cuidado da Casa Comum – Cinco anos depois da Laudato Si’ reforça e atualiza as propostas da encíclica. Lembramos algumas: a educação, o apelo ao ‘investimento ético’ e não ao consumismo cego, o reconhecimento jurídico da figura de ‘refugiado climático’, a exigência crucial de se acabar com a vergonha revoltante dos paraísos fiscais.

A Laudato Si é um guia de sobrevivência para a Humanidade no presente e no futuro e um contributo fundamental para a viabilidade humana no Planeta que nos acolhe. E não temos outro.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.