Fui-me habituando a ouvir o P. Vasco Pinto Magalhães afirmar que a palavra desporto derivava da ideia de “sem porte” e que, como tal, o futebol já não era um desporto, mas sim um mercado onde se compravam e vendiam pessoas como se de mercadorias se tratassem. Sempre que o ouvia era tomado por uma ligeira irritação. O futebol tinha ocupado um importante espaço na minha vida desde que tinha memória – como praticante amador e como adepto – e colocar em questão algo que me era tão caro e (aparentemente) estruturante irritava-me e contrariava-me; mais ainda porque, na verdade, não tinha argumentos para desconstruir a sua afirmação e, no meu íntimo, sabia que era verdade.
Desde essa altura – há quinze anos – aquilo que indignava o P. Vasco banalizou-se e cresceu exponencialmente. Aquilo que antes era ainda pouco assumido e secundarizado, é hoje um dado adquirido e principal: o futebol-mercado afirma-se em todo o seu esplendor de ganhos, perdas, lucros, prejuízos, compras e vendas de bens e, acima de tudo, de pessoas – cada vez mais transacionáveis (incluindo menores de idade), cada vez mais mediatizáveis, cada vez envolvendo montantes de dinheiro maiores.
(uma primeira nota para dizer que sei que este fenómeno não acontece apenas no futebol e que é, nos nossos tempos, algo natural em muitos outros supostos “des-portos”, mas é este que mais conheço e que mais impacto tem na sociedade portuguesa, por isso me refiro especificamente a ele).
Chegámos ao ponto de se quase estabelecer um “campeonato de transferências” onde os clubes (e não as equipas) são avaliados pelos bons ou maus negócios que fazem quando transacionam pessoas. Para um crescente número de adeptos este também já é um campo de vitórias ou de derrotas, alegrias ou tristezas, satisfações ou frustrações – a (enorme) diferença é que já não estamos a falar do jogo futebol e dos resultados da competição desportiva (onde os jogadores são os protagonistas), mas sim do mercado futebol (onde os empresários e dirigentes são protagonistas e os jogadores apenas bens transacionáveis).
Essa atitude de fundo transmite-se inevitavelmente às crianças e jovens, passando a incluir como uma das suas identidades a de ser uma pessoa que no futuro poderá ser (e, pior ainda, deseja ser) vendida pelo melhor preço.
Partindo de um propósito de honestidade para connosco e para com a sociedade em que vivemos, vale também a pena questionar a moralidade dos (cada vez maiores) valores envolvidos nestas transações e no mundo do futebol em geral.
Mesmo para quem defende que se é lucrativo, então está justificado – preferindo enterrar a cabeça na areia em relação ao facto de nos últimos vinte/trinta anos terem entrado no mercado do futebol um conjunto muito significativo de atores cuja riqueza é de origem altamente duvidosa ou escolhendo acreditar que estes decidiram investir milhões por amor e boa vontade e não porque esta será uma via muito interessante para transformar dinheiro “sujo” em dinheiro “limpo” (e não falemos do mercado de apostas…) – talvez valha a pena pensar nisto: num país onde 20% da população (cerca de 2.000.000 de pessoas) vive com rendimentos inferiores ao limiar de pobreza (5.443€ anuais), como é possível rejubilar com a possibilidade de se transacionar um concidadão por um valor 22.000 vezes superior a este limiar (sendo que só o seu empresário irá ganhar com a transação um valor que levaria a cada um destes 2 milhões de pessoas mais de 2.200 anos a ganhar)? E que dizer desse cidadão ir auferir num dia mais do que três destes seus conterrâneos auferem, em conjunto, num ano? O João Félix vai ganhar acima de mil vezes mais que cada um destes 2 milhões de seus conterrâneos que vivem em privação, com todas as consequências que daí advêm (sendo que, ironicamente, uma grande parte serão seus fãs)… Ah, mas o dinheiro é dos espanhóis e, ainda para mais, uma coisa não tem nada a ver com a outra! Acha mesmo, honestamente, que não? E se do universo nacional passássemos para os números (e pessoas) da pobreza a nível global?…
(uma segunda nota para dizer que nada me move contra o João Félix, a quem desejo que possa viver uma vida muito feliz e proveitosa – calhou ser ele como poderia ser qualquer outro jogador que estivesse em vias de ser transacionado por uma verba exorbitante à data em que escrevo este texto).
E o que tem isto a ver com educação para a cidadania?
Em primeiro lugar, respondendo a esta crescente histeria mercantil e mediática à volta do futebol, um número crescente de pais e mães começa a acreditar que o seu filho poderá mesmo ser o próximo Cristiano Ronaldo (ou, agora, o próximo João Félix), investindo – literalmente – no seu filho e passando-o a ver (mesmo que inconscientemente) não só como pessoa, mas também como investimento, acalentando no seu seio o desejo de um dia mais tarde esse investimento ser recompensado com muito sucesso e… dinheiro. Essa atitude de fundo transmite-se inevitavelmente às crianças e jovens, passando a incluir como uma das suas identidades a de ser uma pessoa que no futuro poderá ser (e, pior ainda, deseja ser) vendida pelo melhor preço. Não estou a dizer que estes pais e mães são uns monstros e que não querem o melhor para os seus filhos. Acredito que na maioria dos casos as suas intenções sejam as melhores, mas parece-me que falta discernimento e que as escolhas que se fazem têm, inevitavelmente, consequências.
Em segundo lugar, pensando duma forma mais generalizada, sabemos o forte impacto mediático do futebol, não só nos adultos, mas também nas crianças e jovens, muitos deles tendo nos seus protagonistas verdadeiros ídolos e modelos a seguir. Como é que as crianças e jovens interpretarão (consciente e inconscientemente) este mercado de compra e venda de pessoas? Como é que o integrarão nas suas mundivisões, no seu quadro (em construção) de valores e princípios, nas suas atitudes e ações? Como é que, no seu pensar e sentir, este mercado dialoga com a dignidade humana, a equidade, a solidariedade e a justiça?
Talvez valha a pena falar sobre isto lá em casa.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.