Habitualmente, fazemos um juízo negativo do conceito e da realidade da multidão. Reduzida à sua dimensão coletiva ou mesmo coletivista, enquanto massa anónima, facilmente manipulável, a multidão parece não permitir a liberdade das opções pessoais, aparentemente as únicas dignas de um sujeito livre e emancipado, enquanto indivíduo que se destaca das massas, pela sua diferença e pela autenticidade das suas escolhas e das suas ações.
Talvez devido a esta leitura, certamente muito influenciada pelas tendências individualizantes da modernidade, preferimos concentrar a atividade de Jesus na sua relação com os apóstolos e com os discípulos: estes “destacam-se” da multidão e acompanham Jesus mais de perto, tendo mesmo deixado tudo para o seguir. Aliás, transformámos o perfil do crente precisamente neste perfil do discípulo (também assumido como apóstolo, sobretudo no perfil do apostolado dos leigos), com a exclusão de quase todos os outros. O próprio conceito de laicado, impulsionado pelo Concílio Vaticano II, coincide preponderantemente com esta figura do discípulo. Ou seja, tudo indica que estendemos o estatuto excecional – de extração, de separação – do clero, enquanto sacerdote ou homo sacer, ao grupo dos fiéis leigos, também eles excecionais, separados do resto do mundo. Clericalizámos os leigos, em vez de dessacralizarmos o clero.
Com tudo isso, ao relermos os textos dos Evangelhos (quando o fazemos), esquecemos uma “personagem maior, no plano narrativo, pela permanência da sua presença ao longo das narrações e pela sua identidade explícita” (Valérie Le Chevalier, Ces fidèles qui ne pratiquent pas assez…, 48): trata-se, precisamente, da multidão. Jesus cuida dela, compadece-se, alimenta-a, realiza curas (sinais de salvação) e reenvia-a para o quotidiano: “Vai, a tua fé te salvou!”. A multidão não o segue, em sentido estrito; ou melhor, “segue-o” de outro modo, precisamente nas lides quotidianas. E é aí que acontece a salvação oferecida por Jesus.
Esta noção de multidão chega a ser mais significativa que a noção de povo. Porque um povo implica, sempre, um confinamento identitário, seja por história, seja por etnia, seja por território. A multidão não tem confins definidos; em rigor, representa a humanidade aberta, os humanos como viventes em relação. O povo, por seu turno, para corresponder a uma identidade específica – este povo e não aquele, nós e não os outros – depende muito dos seus líderes e da sua orientação, até à manipulação. É assim que nascem e proliferam todos os populismos. A multidão pode, sem dúvida, ser manipulada por estratégias diversas; mas é sempre também o lugar em que se multiplicam táticas de resistência: precisamente aquilo que impede a posse e o domínio total dos humanos sobre os humanos.
Espinosa, autor de um famoso tratado teológico-político, prefere o conceito de multidão ao conceito de povo. Precisamente por essa potência inefável da multidão, que representa o carácter inesgotável e indominável de toda a realidade, a qual escapa sempre às nossas tentativas organizacionais. A multidão é a humanidade, anterior e superior a todos os exercícios de poder, venham eles de cima para baixo ou de baixo para cima. Por isso, a multidão é sempre a fonte da verdadeira resistência; porque é aquela que permanece, mesmo na revolução. As elites resistem para, depois, dominar. A multidão resiste sempre, mesmo quando parece que se deixa dominar.
Jesus fascinou-se com a multidão, porque o seu Reino não conhece as fronteiras demasiado humanas dos nossos reinos, que dividem os humanos entre cidadãos e estrangeiros. Talvez também não coincida com as nossas igrejas, que dividem os humanos entre crentes e não crentes, praticantes e não praticantes, fiéis e infiéis, comprometidos e não comprometidos.
Jesus fascinou-se com a multidão, porque o seu Reino não conhece as fronteiras demasiado humanas dos nossos reinos, que dividem os humanos entre cidadãos e estrangeiros. Talvez também não coincida com as nossas igrejas, que dividem os humanos entre crentes e não crentes, praticantes e não praticantes, fiéis e infiéis, comprometidos e não comprometidos.
A crises quantitativas que as igrejas contemporâneas atravessam podem incentivar um ideal de minorias, selecionadas pela elevação do discipulado e pelo esforço da dedicação e do compromisso. Mas tendem a contrapor essas minorias ao resto da humanidade, mesmo o resto dos crentes menos fervorosos. Assumindo-se a si mesmas como o “resto” fiel, esquecem o verdadeiro “resto” que representa a humanidade dos pobres anónimos – precisamente a multidão anónima dos humanos que luta e resiste, no quotidiano, à manipulação por parte de minorias.
Não estarão as igrejas contemporâneas perante o grande desafio de uma correta e equilibrada relação com a multidão – consigo mesmas, enquanto multidão dos fiéis, e com a multidão dos humanos, muito para além dos seus confins? Não é a essa multidão que se dirige o Papa Francisco, tal como Jesus, ao anunciar o cuidado e o acolhimento de todos, sem exceção? Jesus nunca disse que veio para os perfeitos – bem pelo contrário. Porque insistimos em construir um reino de perfeição, esquecendo a multidão de que fazemos parte?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.