Jeremias nasceu em 1998 e é mais um filho único. Os pais são trabalhadores indiferenciados e a mãe tem o 4º ano e o pai o 9º ano. Fez toda a sua escola básica no mesmo Agrupamento de Escolas (AE), no Porto. Ao chegar ao 5º ano, começaram a surgir vários problemas graves de desfasamento entre o aluno e a escola. Esta comunica à CPCJ que o aluno começou a faltar e que apresenta comportamentos inadequados. Aliás, a situação de conflito entre o aluno e a escola está identificada e documentada pelo AE desde o primeiro ano de escolaridade. Fruto desses desfasamentos de interesses e de atitudes, reprova no 5º ano, no ano letivo de 2009/10, pela primeira vez. No ano seguinte, a escola pede que que Jeremias seja considerado “aluno da Educação Especial por Hiperatividade e Défice de Atenção”, o que não é aceite. O aluno não consegue acompanhar a proposta escolar e volta a reprovar no 5º ano. No ano seguinte, tenta realizar o 5º ano pela terceira vez. O seu DT diz que o Jeremias está numa “situação incontrolável” e elabora um relatório para a direção da escola em que diz: “o aproveitamento, empenho e responsabilidade pelas tarefas escolares têm desde sempre sido insignificantes, não realizando trabalhos de casa, não se aplicando minimamente no estudo e mesmo não estando atento nas aulas”. E prossegue: “ Quase diariamente e por vezes a mais do que uma disciplina no mesmo dia, o aluno não cumpre com as mais elementares regras de educação e do conduta na sala de aula, desrespeitando colegas e professores, muitas vezes simplesmente ignorando-os, continuando a seu belo prazer em discussões, afrontações e ameaças.”
Refere que “a mãe defende o aluno e responsabiliza a escola por provocarem e molestarem o seu filho física e psicologicamente”, registando-se, na opinião da mãe, uma clara situação de bullying.
E continua, concluindo: “haveria a possibilidade do aluno usufruir de conteúdos programáticos adequados, se o mesmo apresentasse um mínimo de participação, dedicação ou educação nas aulas. O que se tem revelado é que em todas as situações em que se perspectiva um presumível apoio mais individualizado, as intervenções são ultrapassadas pela postura descomprometida, irresponsável, autoritária e conflituosa do aluno.”
Noutro relatório, quatro meses depois, ainda em 2012, o mesmo DT propõe à direção uma suspensão do aluno, referindo “o mais grave é realmente o incómodo constante que este aluno provoca, transformando a quase totalidade das aulas em constantes interrupções e repreensões que impossibilitam uma normal lecionação dos conteúdos, afetando o ambiente da aula e o aproveitamento dos restantes alunos da turma”.
Ou seja, a escola nada faz de realmente diferente em termos educativos não porque não saiba ou não possa, mas porque o aluno, à partida, não quer, mesmo não sabendo do que se trata. É espantosa esta capacidade de fazer do aluno o culpado das incapacidades da instituição!
Ou seja, a escola nada faz de realmente diferente em termos educativos não porque não saiba ou não possa, mas porque o aluno, à partida, não quer, mesmo não sabendo do que se trata. É espantosa esta capacidade de fazer do aluno o culpado das incapacidades da instituição! O que a escola faz, na verdade, são os habituais Planos Individuais de Trabalho a todas as disciplinas, os planos de Apoio Pedagógico e os Planos de Recuperação.
No fim do dia, o que escola disse foi que o aluno não cumpriu e Jeremias é reprovado pela terceira vez. Mais o mais impressionante é que reprova agora, pela terceira vez, na mesma escola, com nível 2 a todas as disciplinas, sem exceção.
O que é que isto quer dizer em termos educativos? Que sinal é que a escola está a dar ao aluno? Para este aluno, este AE será mesmo uma instituição educativa? O que acontece é que não sendo posto em prática um modo humano, flexível e profissionalmente inteligente de gerir o currículo escolar, o aluno é obrigado compulsivamente a regressar à mesma escola, no mês de setembro seguinte, para o mesmo. Jeremias frequenta assim pela quarta vez o 5º ano.
Entretanto, num documento de autoavaliação, Jeremias refere que até gosta da escola e do convívio com os amigos. O que constitui, depois de tanta ineficácia educativa escolar, uma oportunidade incrível para a escola poder “funcionar”, para poder ir verdadeiramente de encontro ao aluno e oferecer-lhe algo de novo e especificamente adequado a si.
O que é que isto quer dizer em termos educativos? Que sinal é que a escola está a dar ao aluno? Para este aluno, será mesmo uma instituição educativa?
Em 2012/13, faz então o 5º ano pela 4ª vez e a escola oferece-lhe-lhe um “programa educativo individual”. Tem apoio na sala de aula e fora dela e conta com apoio individual a três disciplinas. Mas nada muda de essencial: o currículo é o mesmo, as disciplinas são as mesmas e o modo de as ensinar é o mesmo, apenas há mais horas/professor para dar mais fichas de trabalho e mais explicações individuais. Mas, à quarta vez, a escola opta por criar um clima de facilidades, para aliviar a pressão e o desgaste mútuo e para deixar o aluno “progredir”.
De facto, no fim do ano, “pelo facto de ter havido pequenos progressos em relação ao ano anterior” o aluno transita com 3 níveis negativos, avaliado ao abrigo de um normativo especial (adequações curriculares e condições especiais de avaliação).
Que avaliações são estas? Que ziguezagues e progressos são estes? Afinal, o que é o currículo escolar, para brincarmos assim com ele? Do que é que estamos a falar, em termos educativos?
No ano letivo seguinte, frequenta o 6º ano, na mesma escola e transita. No ano seguinte, frequenta o 7º ano e transita também, com a ressalva de que “deve melhorar o comportamento”. No ano letivo seguinte, em vez do 8º ano, é colocado numa turma do Ensino Vocacional, intitulado, calcule-se, “saúde, hidrobalneoterapia e comércio” (sic). Não resulta e o aluno é remetido para um “colégio” especial.
Falta-nos percorrer ainda um longo caminho, em Portugal, para que a escola elitista do passado se transforme numa escola que acolhe todos e promove cada um, sem exceção.
Porquê agora, um currículo especial, sete anos depois e tanta “tortura” escolar depois? Em nome de quê? E porquê, sete anos depois, “despachá-lo” para outra instituição?
Falta-nos percorrer ainda um longo caminho, em Portugal, para que a escola elitista do passado se transforme numa escola que acolhe todos e promove cada um, sem exceção. Uma parte substancial dos professores e dos pais ainda vive dependente desta ideia de uma escola para a elite; há um corte epistemológico e cultural que teima em não ser produzido, porque uma boa parte de quem forma os professores e de quem enforma as políticas ainda mora mentalmente nesse passado. A escola portuguesa, em ambiente democrático há perto de 50 anos, parece tantas vezes uma jangada à deriva no mar da democracia e da equidade. Fizemos progressos notáveis, não há qualquer dúvida, mas a igualdade de oportunidades ainda é um mito e é, na cabeça de muitos, um projeto irrealizável. Não aprendemos ainda a dar a cada um aquilo que é o mais adequado e justo. Como se a justiça escolar fosse uma assunto sempre sumariado, mas cuja abordagem passa para a aula seguinte.
Afinal, o que quer esta falsa escola pública e democrática? Ser meramente o local que educa para a obediência e para a normalização social? Ser a instituição onde se aprende a cumprir a norma instituída, a ordem estabelecida e a passividade? Mas esta não é uma cultura que aniquila a novidade que cada ser humano é chamado a ser, impedindo-o de o ser?
Enquanto desfio estas e muitas outras perguntas, recordo o professor Eurico Lemos Pires, que nos deixou recentemente e de quem tanto gostava. Temos de continuar a fazer estas e outras perguntas até que a escola seja verdadeiramente uma instituição educativa e justa, capaz de praticar a equidade perante cada aluno e não como um ramalhete dos normativos.
Afinal, o que quer esta falsa escola pública e democrática? Ser meramente o local que educa para a obediência e para a normalização social?
Sentada em cima de deliberações que dizem que a escola é democrática e pratica a equidade e que, ao mesmo tempo, ditam que ela é universal e obrigatória, a instituição escolar não tem o mínimo direito de destruir pessoas e futuros, sob que pretexto for. São assustadoramente ridículos e profundamente desoladores os casos escolares que tenho relatado e que, infelizmente, representam situações comuns em qualquer escola, salvo raríssimas exceções, as poucas que assentam em modelos e desenvolvem práticas com quem todas as outras deviam aprender a ser instituições de educação, democráticas e justas.
Fazem-nos muita falta as suas perguntas incisivas e inteligentes, professor Lemos Pires! Entretanto, a sua memória ajuda-nos a não tolerar nunca esta escola injusta e que persistiu, em democracia, sempre pronta a atar uma mó aos mais pobres, mais inadaptados, mais abandonados e aos diferentes, o que os leva para a marginalidade e para uma nova exclusão.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.