Da passagem do Evangelho que se lê quarta-feira de cinzas vem a proposta que a Igreja faz aos cristãos na Quaresma para viverem mais de acordo com o seu baptismo. Jejum, oração e esmola. Sem trombetas, com toda a discrição, longe dos olhares, com alegria, cabeça perfumada e cara lavada. Apenas para “o Pai, que está nos Céus”, que “vê o que está oculto”, que “está presente em segredo”.
O sentido do jejum é a mortificação. Privar-se de alguma coisa para se lembrar, no seu próprio corpo, porventura, de que é de Deus que realmente dependemos, que é a Ele que devemos confiar a nossa inteira liberdade. A partir deste sentido, e examinando o nosso coração e a nossa vida com a luz do Espírito Santo, podemos perceber a que somos chamados a renunciar.
Jejum é, pois, renunciar a si próprio, seja através do esforço de não comer doces, de só ingerir líquidos, ou largar as redes sociais – mas é renunciar a si próprio para dar lugar a Deus, ou a outros que Deus nos confia. Jejum, esmola e oração estão, por isso, ligados entre si. Crescem uns com os outros.
Rezar cansa, podia ler-se recentemente no maravilhoso artigo de Enzo Bianchi traduzido por Rui Jorge Martins para o site da Pastoral da Cultura. É que o encontro com Deus no silêncio é também tempo que se tira de tudo o resto. É aceitar que a agenda do dia não seja determinada pelas tarefas, mas pelo Senhor. Sair da esfera da eficiência, do fazer acontecer, para entrar na esfera do estar, do permanecer, do escutar, mesmo se nada parece acontecer.
Na oração o coração cresce silenciosamente. Pouco a pouco, sem alarido, começa a exigir uma atenção que excede o interesse, um cuidado que ultrapassa o conforto. Em Deus, por Deus, o coração alarga-se, rasga-se, para que entrem todos.
A Quaresma é um tempo favorável, uma altura em que procuramos viver estas dimensões com especial intensidade, em preparação para a Páscoa, o centro de tudo.
Dar esmola, ouvimos desde as parábolas que Jesus contou, é muito mais do que dar o que sobra. Sabemos a história da viúva pobre, que deu tudo, que deu o que lhe fazia falta. E sabemos também como Jesus se esconde dentro “dos irmãos mais pequeninos” e que servindo-os, é a Ele que servimos.
Partilhar o que temos e o que somos, e até o que também precisamos, põe-nos na posição exacta em que Deus nos criou: parte de um povo que caminha para Ele, em que a distância não pode querer dizer indiferença.
Na verdade, trata-se de três dimensões fundamentais da vida cristã, não exclusivas da Quaresma. E aliás, em certa medida, são práticas transversais a várias religiões e cujo apelo perdura até hoje, até em esferas seculares. A diferença aqui será a dimensão transcendente que ganham: não fazemos jejum para equilibrar a dieta, ou não equilibramos a dieta para ganhar uma certa imagem. Fazemo-lo para nos libertarmos para Deus, para vivermos com Ele no centro. Assim como não rezamos ou meditamos para limpar a mente ou reduzirmos o stress do dia-a-dia, embora rezando isso possa até acontecer. Rezamos para levantar os olhos e o coração para Deus, que nos ama incondicionalmente e nos criou para esse amor. E finalmente, não será em nome de uma fraternidade tolerante mas abstracta que partilhamos os nossos bens, o nosso tempo, a nossa vida – mas porque queremos assumir a missão de Jesus.
A Quaresma é um tempo favorável, uma altura em que procuramos viver estas dimensões com especial intensidade, em preparação para a Páscoa, o centro de tudo. Chamados a recentrar-nos no essencial, guardando tempo para Deus, aceitando depender só Dele e viver entregando-nos como Ele, durante a Quaresma podemos esforçar-nos para viver à altura do nosso baptismo, certos de que a força não virá da app de jejum intermitente que instalámos nem da lista das obras de misericórdia que partilhámos nas stories do Instagram, mas da graça Deus, que nos assume como seus filhos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.