Indiferença que mata

A indiferença é a primeira barreira a derrubar nos processos de aprendizagem em que nos envolvemos. Diria eu, pela minha experiência, a principal barreira.

A denúncia e o combate à indiferença perante a injustiça e o sofrimento dos outros tem sido um dos motes do discurso e da ação do Papa Francisco. Na recente encíclica Fratelli Tutti, o Papa fala-nos duma “indiferença acomodada, fria e globalizada, filha duma profunda desilusão” [30], falsamente justificada pelo determinismo ou fatalismo em que nos deixamos, tantas vezes, cair [cf. 57].

Muito tempo antes, já Jesus Cristo nos alertava para o quão destrutiva pode ser esta atitude de indiferença face ao outro; não só para o outro, mas também para nós. A parábola do Bom Samaritano é exemplar na clara denúncia desta “perigosa indiferença que leva a não parar, inocente ou não, fruto do desprezo ou duma triste distração” [FT, 73]. Inspirado por esta história, diz-nos o Papa Francisco que “há muitas maneiras de passar ao largo, que são complementares: uma é ensimesmar-se, desinteressar-se dos outros, ficar indiferente; outra seria olhar só para fora” [idem]. Neste processo destrutivo, “verifica-se um desprezo dos pobres e da sua cultura” [idem], justificando-se assim a indiferença “de alguns, pois aqueles que poderiam tocar os seus corações com as suas reivindicações simplesmente não existem; estão fora do seu horizonte de interesses” [idem].

Num outro nível, Martin Luther King, na sua luta pacifista por justiça, afirmava que o que o preocupava não era o grito dos maus, mas sim o silêncio dos bons. Estes “bons”, diria eu, são todas as “pessoas de boa vontade” a quem o Papa Francisco dirige a Fratelli Tutti [cf. 6, 56]; somos (quase) todos nós. E este silêncio, podendo ter muito de medo e de bloqueio em algumas situações, na maioria das vezes é o fruto da planta semeada pela indiferença, pela insensibilidade, pela distância menosprezadora que nos isola da realidade [cf. 73].

Esta é também uma questão central para quem, como eu, trabalha na área da Educação para a Cidadania (Global). A indiferença é a primeira barreira a derrubar nos processos de aprendizagem em que nos envolvemos. Diria eu, pela minha experiência, a principal barreira. Ultrapassada, os desafios continuam a ser muitos e exigentes, mas a base comum para os enfrentarmos em conjunto está criada.

Com o passar do tempo e o “normalizar” da situação (pandemia), foi crescendo a indiferença, a insensibilidade e o afastamento, deixando as pessoas de se verem como parte (nem do problema, nem sequer da solução) e, assim, sobrepondo facilmente os seus interesses individuais e grupais ao bem comum, ao bem maior.

Lembro-me muitas vezes, quando comecei nestas andanças, da insistência obstinada duma colega em trabalhar em todas as sessões que dinamizávamos a questão “Como é que eu sou parte do problema?”. A tendência era saltar logo para o “Como é que eu sou parte da solução?”, mas ela insistia que, sem a reflexão sobre a primeira pergunta, a resposta à segunda valia muito pouco. E tinha razão.

Lembrei-me muito deste tema nos últimos dias, face aos discursos, atitudes e comportamentos dum grande número de pessoas em face da pandemia. Aconteceu com grande parte de nós o mesmo que acontece em relação aos problemas sociais estruturais que tanto trabalhamos nos processos de Educação para a Cidadania: com o passar do tempo e o “normalizar” da situação, foi crescendo a indiferença, a insensibilidade e o afastamento, deixando as pessoas de se verem como parte (nem do problema, nem sequer da solução) e, assim, sobrepondo facilmente os seus interesses individuais e grupais ao bem comum, ao bem maior.

Quanto mais estruturais os problemas sociais são, mais indiferentes ficamos. Podemos justificar-nos com vários argumentos sociopsicológicos, mas a verdade é que, no fim, é mais fácil (e mais cómodo) ficarmo-nos pelo determinismo ou fatalismo que o Papa Francisco afirma justificar esta “indiferença acomodada, fria e globalizada” [FT, 30], uma indiferença que mata.

Agora, face aos números devastadores, voltámos à perceção de catástrofe e a mobilização (e a preocupação) generalizada regressou. Quando as coisas voltarem a melhorar e a estabilizar, será que aprendemos alguma coisa? Como fui/sou parte do problema? Como fui/quero ser parte da solução?

 

P.S. Este texto foi escrito antes das Eleições Presidenciais. Depois de conhecidos os seus resultados, as nuvens da intolerância, da indiferença e da insensibilidade face a alguns outros adensam-se. Sugiro esta leitura para reflexão.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.