“Inclinou-se para lhes lavar os pés”

Jesus não quer a severidade ou os julgamentos apressados, mas antecipa-se com a sua misericórdia. Perante o pobre, o miserável, o que sofre, Ele inclina-se, cuida das feridas, ergue do chão, retira do pó da terra.

Gosto muito de uma pintura alusiva ao lava-pés, da autoria de Sieger Köder, padre e pintor alemão (13/01/1925 – 02/02/2015). Face a outras representações onde claramente se evidenciam as figuras de Cristo e dos discípulos, nesta Cristo está como que escondido, porque profundamente inclinado perante o discípulo a quem lava os pés. Até o seu rosto se esconde, tal a importância do gesto que é por ele realizado. O próprio Jesus, Mestre e Senhor, inclina-se perante os seus discípulos e, neles, perante cada homem e mulher. Para lhes dizer a sua profunda dignidade, o amor que lhes tem ao ponto de por todos dar a vida, o como para Deus é importante que os seus filhos e filhas se sintam amados, queridos. Como são importantes a seus olhos.

sieger köder

Não posso deixar de relacionar esta atitude e postura de Jesus, que se inclina e serve, com outros gestos que acompanham algumas das leituras que fomos fazendo durante esta Quaresma e nesta Semana Santa. E, curiosamente, todos eles relacionados com mulheres. No 5º Domingo da Quaresma, é uma mulher adúltera que é trazida até Jesus. Contra os que a condenavam e queriam apedrejar, Jesus oferece o seu perdão. Perante as acusações que lhe são feitas, Jesus escreve na terra. Relembrar-se-ia da fragilidade e da dignidade daquele que nasceu da terra, moldado por Deus? No início da Semana Santa, é uma mulher que, em Betânia, derrama abundantemente um caro perfume aos pés de Jesus. Tantas outras e outros se encontraram de modo similar com Jesus, pedindo a cura para si ou para um familiar ou amigo, desejando vê-lo mas sem ousar falar-lhe. Em todos esses relatos, Jesus pára, olha, escuta, inclina-se. Nas suas parábolas, fala do bom samaritano, do pai misericordioso. Jesus não quer a severidade ou os julgamentos apressados, mas antecipa-se com a sua misericórdia. Perante o pobre, o miserável, o que sofre, Ele inclina-se, cuida das feridas, ergue do chão, retira do pó da terra.

Mas, ao mesmo tempo, Jesus faz o movimento contrário para ir ao encontro de todos os que vão até às profundezas do sofrimento e da morte. O inclinar-se durante a última ceia tem a sua consequência maior nessa entrega que o fará cair por terra a caminho do calvário, ser zombado e escarnecido, acolher o abandono e o silêncio de Deus, aos quais responde com o grito orante dos que sofrem, descer aos infernos, às profundezas da terra. É Jesus quem vai até ao fim nesse esvaziamento de si mesmo, nesse abaixamento que chega a todos os abismos da nossa condição humana.

O inclinar-se durante a última ceia tem a sua consequência maior nessa entrega que o fará cair por terra a caminho do calvário, ser zombado e escarnecido, acolher o abandono e o silêncio de Deus, aos quais responde com o grito orante dos que sofrem, descer aos infernos, às profundezas da terra.

A manhã de Páscoa traz, contudo, o túmulo vazio, a resposta à procura amorosa das mulheres, o dom da paz e do Espírito, de novo soprado sobre os discípulos. É a nova criação que se inicia, e a esperança que se reacende, a partir do encontro com Cristo ressuscitado. De novo, e agora de modo definitivo, a nossa humanidade é reerguida e levada à sua plenitude.

Neste ano de Jubileu, em que somos convidados a ser peregrinos de esperança, precisamos de fazer nossos os sentimentos de Jesus. Acolhendo o repto do papa Francisco, aliás repetindo as luminosas palavras de João XXIII na abertura do Concílio Vaticano II, temos que definitivamente abandonar a severidade, a estreiteza de vistas, uma visão clericalista e essencialmente moralista da vida cristã. Jesus ensina-nos o caminho e os gestos: parar, olhar, inclinar-se, reerguer, acolher, cuidar, perdoar. A esperança que nasce da Páscoa é o fundamento de uma utopia, de um dinamismo que exige o nosso compromisso em ordem à transformação do mundo. De nada nos servem as celebrações jubilares se estas não se fizerem acompanhar de gestos concretos de misericórdia e de serviço. Neste mundo que parece dar cada vez mais espaço aos totalitarismos e à prepotência do poder, é a força frágil do amor, como lhe chamava Andrea Riccardi, o fundador da comunidade de Sant’Egídio, a única capaz de verdadeiramente transformar o mundo.

Boa Páscoa!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.