Incêndios, batom e porcos

A grande questão dos incêndios tem que ver com a sustentabilidade do mundo rural, com a sua apelatividade, com o seu futuro.

O ano de 2017 ficou marcado pela tragédia dos incêndios no continente. Mais uma vez, segundo dados do Sistema Europeu de Informação de Fogos Florestais, Portugal foi o país do sul da Europa com maior número individual de fogos. Morreram 64 pessoas no incêndio de Pedrogão Grande, em junho, e mais 45 nos incêndios de 15 de outubro No total do ano, arderam mais de 500 mil hectares, o valor mais elevado desde que há registos. O SIRESP falhou, o comando falhou, o discurso político falhou. Foi um ano verdadeiramente catastrófico, onde os adjetivos acabarão sempre por pecar por escassos. Um ano intolerável, um escândalo absoluto que não pode ser repetido, cuja memória o nosso país deve guardar para sempre com dor e vergonha.

Aquilo que aconteceu neste verão não pode ser esquecido. Mas esquecê-lo é, de facto, uma tentação. É uma tentação pensar que condições meteorológicas como as de 2017 não se podem repetir, ou que a complexidade do teatro de operações não se pode repetir, ou ainda que a gravidade do que aconteceu este ano não se verificou quando em 2010, 2013, ou 2016, arderam também áreas significativas. Foi, de facto, uma tentação acreditar que o conjunto muito específico de circunstâncias que levou ao desastre de Pedrógão Grande, em junho, era tão improvável que não podia repetir-se quatro meses depois. Mas repetiu. Pior: o passado recente veio demonstrar que a estupefação generalizada na altura dos incêndios foi oca e facilmente suprimida pelo passar do tempo. E que, como muitos previram, até agora, as consequências destes incêndios foram nulas: politicamente, economicamente, socialmente.

Acima de tudo, a maior tentação que podemos sofrer, seja no rescaldo imediato da tragédia ou já numa fase posterior, é deixarmo-nos enredar em discussões sobre o assunto dos incêndios que são, no fundo, mentirosas: discussões que falam do problema dos fogos e da solução para os fogos como consistindo ou na implementação de técnicas de prevenção, ou na aquisição de melhores meios de combate. Discussões sobre o que poderia ter sido melhorado em termos de comunicação, em termos de previsão, ou em termos de equipamento. Discussões sobre as espécies autóctones das nossas florestas, sobre o enquadramento penal que pune os instigadores de fogo, ou sobre a necessidade de recorrer a meios aéreos estrangeiros. A todas estas discussões assistimos ao longo dos últimos meses. São, até, recorrentes, em anos de grandes incêndios. O problema, contudo, é que todas estas discussões são essencialmente cosmética. Como dizem os americanos, são a mesma coisa que pôr batom num porco e esperar que fique bonito: um porco continua a ser um porco, por mais batom que tenha; e os incêndios florestais continuarão a ser um problema, por mais que se insista na discussão de qual é a melhor forma de os prevenir ou combater.

A grande questão dos incêndios não tem que ver nem com a prevenção nem com o combate ao fogo. Ou melhor: tem, mas numa maneira totalmente diferente daquela a que nos temos habituado. A grande questão dos incêndios tem que ver com a sustentabilidade do mundo rural, com a sua apelatividade, com o seu futuro. A grande questão dos incêndios tem que ver com a dificuldade com que se depara uma família jovem que quer viver e trabalhar na terra onde cresceu, educando os seus filhos nessa terra, provendo ao seu sustento. O problema que nos continuará a afligir é o da debandada do mundo rural, provocada mais por necessidade do que por desinteresse. E esta debandada é aquilo sobre o qual é mais difícil de conversar para todos os que estão envolvidos na vida política, porque é aquilo que mais exigente será em termos de mudança.

No fundo, a grande questão a perguntar é esta: qual a razão que leva alguém a não abandonar o campo? Como tem sido bem notado por uma mão cheia de conhecedores do tema, o mundo do campo é um mundo duro: o trabalho é mal pago; as escolas são escassas; a cultura, a arte, o lazer, são raros, são caros e não refletem a vida das populações. O mundo rural partilha da precariedade das grandes cidades – sem ter, a par da precariedade, os benefícios que as cidades continuam a ter.

Para que o mundo rural faça sentido, é preciso que o país não desista dele. E não desistir dele significa insistir nele, compensá-lo, repartir com ele o que o mundo urbano ganha em parte porque o mundo rural existe. O mundo rural precisa, por exemplo, de ser compensado com um bom sistema de saúde, que não obrigue famílias a deslocações impensáveis por um habitante de uma grande cidade se um dos seus filhos está doente. Precisa de ter segurança, boas escolas, boas estradas. E precisa, evidentemente, de repensar toda a sua relação com o campo, com a agricultura, com a floresta, com o salário justo, com o emprego sustentável.

O raciocínio aqui não é económico, levando a um cálculo de quanto deve receber o mundo rural por causa daquilo que produz. É um raciocínio que desafia essa lógica e que assume que, para que possa ser preservado, o mundo rural tem que ter incentivos extraordinários. Porque sem incentivos extraordinários, sem incentivos que façam com que as famílias estejam dispostas a suportar o peso e a precariedade, a atração mirabolante de uma vida confortável na cidade acabará inevitavelmente por ser mais forte. E o campo não pode sobreviver sem o mundo rural, a floresta não pode sobreviver sem o mundo rural, o mundo urbano não pode sobreviver sem o mundo rural.

A tragédia dos incêndios que assolaram o país em 2017 não pode ser esquecida. Há questões a resolver no que diz respeito à prevenção dos incêndios e ao seu combate. Mas, sem resolver a questão da vida rural, da sua falta de rendimento, da sua falta de empregabilidade, da sua falta de estabilidade, o problema dos incêndios nunca será ser resolvido. Será como pôr batom num porco e esperar que fique bonito.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.