Vivemos num mundo de hibridez.
Nos últimos anos cresceu muito o número de carros e outros veículos híbridos. Esse é para mim o sinal visível duma nova realidade cultural marcada pela hibridez. Realidade que se espraia por muitas áreas da vida. Senão vejamos:
A comunicação entre as pessoas é hoje completamente híbrida: por redes, grupos, chats, almoços, reuniões, etc, em combinações muito diversas entre o virtual e o presencial. Em muitas empresas o teletrabalho veio para ficar, complementado com momentos presenciais que fortalecem as equipas e dão outro azo à criatividade. Certas profissões foram ganhando um enorme ecletismo, como é o caso dos professores, que passaram a ser uma mistura híbrida de mestres, explicadores, pais, psicólogos, gestores informáticos, sargentos, investigadores, animadores sociocomunitários, administrativos, …
Foi justamente na área do ensino que surgiu há anos o conceito STEAM (Science + Technology + Engineering + Arts + Mathematics) que mistura estas áreas todas, dando-lhes novas configurações, quase sempre na busca de inovação. Inovação que atualmente é geralmente entendida como o ensaiar de novas combinações entre áreas ou coisas que ainda não foram misturadas ou conjugadas. Hibridez por todo o lado, na ciência e na inovação.
A universidade também se (re) descobre cada vez mais híbrida – fazendo aliás jus ao seu próprio nome -, integrando mais projetos transdisciplinares e maior ligação às comunidades. A reitora da UCP, na sua recente mensagem “Por um novo humanismo”, escrevia que a universidade “deve articular espaços de tensão: integrando o rigor da exploração científica com a sensibilidade transversal para propostas de conhecimento oriundas de quadros disciplinares distintos; articulando a rapidez e a flexibilidade para inovar com o tempo lento da reflexão; estabelecendo pontes entre a ciência de laboratório e o laboratório vivo da nossa casa comum; afirmando a liberdade criativa e de investigação sem descurar a realidade da revelação”. Querem-se, portanto, academias híbridas.
Em ambiente eclesial também se nota hibridez. A Brotéria é disso um bom exemplo; conjugando na mesma casa-revista-livraria-biblioteca-café, expressões artísticas e literárias, cursos e seminários, debates cívicos e diálogos culturais permeados por uma espiritualidade cristã inaciana aberta ao mundo e a diversas mundividências. Outro exemplo é a vocação emergente ao diaconado permanente; uma das que mais tem crescido em números absolutos. Vocação para homens na maioria casados, que passam a viver uma dupla sacramentalidade (ordem + matrimónio): com trabalho, com filhos, e ordenados para o serviço à comunidade. Uma vocação “todo o terreno”: híbrida.
Já há algum tempo que o pai, além de providente, tem de ser cuidador; e a mãe, além de ser cuidadora, tem de ser providente.
No campo familiar, emergiu o conceito de “parentalidade”, um híbrido de paternidade + maternidade. Conceito abrangente que visa esbater uma certa rigidez dos tradicionais papéis do pai e da mãe. Já há algum tempo que o pai, além de providente, tem de ser cuidador; e a mãe, além de ser cuidadora, tem de ser providente. E neste campo haveria muitos mais exemplos… familiarmente híbridos.
Na política, surgiram novos partidos e movimentos que reconfiguram antigas ideologias, esbatendo conceitos e prioridades outrora identificáveis como só de esquerda ou só de direita, por exemplo reforçando certos valores associados à ponta esquerda e simultaneamente propondo uma economia mais liberal. Hibridez política.
A própria vida do dia a dia é, para muitos, caracterizada por uma multiplicidade de contactos, de projetos diversos, de reuniões diferentes, de compras online, “num sem número de auto investimentos” nem sempre fáceis de articular. Vida híbrida, portanto.
Nesta hibridez toda há imensos aspetos positivos. Somos seres complexos e cada um pode ser e dar vários contributos ao mundo: a hibridez dá espaço à manifestação disso mesmo. Os carros híbridos permitem ganhos ambientais e poupanças (todos os meses experimento isso!). O modo de trabalhar misto fomenta maior conciliação com a vida pessoal e familiar. A parentalidade permite que os pais participem de facto mais na vida interna e quotidiana da casa; e que as mães saiam mais da cápsula do cuidado ininterrupto dos filhos, levando o “génio feminino” a permear diversas instituições e lugares das nossas sociedades. A universidade e a escola ganham quando se tornam abrangentes e abertas a novas áreas do saber e da vida. O diácono permanente pode ser uma excelente ponte entre a família, o mundo laboral e a comunidade eclesial, porque vive por dentro todas essas realidades. A política deixa de ser tão polarizada e “básica”, espelhando talvez melhor a complexidade da vida autêntica. A ciência pode ganhar em muito com os contributos da arte e de outras áreas do saber.
Neste tempo, discernir talvez seja o verbo mais importante (os Exercícios Espirituais podem ajudar), para cada um conseguir entender melhor o que lhe está a ser pedido em cada fase da vida e poder agir de acordo com essa Vontade.
Haverá também aspetos menos positivos ou que precisam de ser melhor esclarecidos. Num mundo de hibridez, instituições e pessoas alargam a sua abrangência e complexidade passando a desempenhar mais missões e papéis. Além do desgaste, há o risco de se perder o foco e dispersar. E podem surgir confusões identitárias e vocacionais, quer a nível institucional, quer a nível pessoal. O vasto campo da sexualidade – e das consequentes conjugalidade e natalidade – talvez seja a área da vida onde a hibridez precisa de ser melhor discernida, para potenciar o melhor e evitar confusões. Neste campo, já muita tinta tem corrido à roda da atual educação dos adolescentes, como cidadãos do amanhã.
Uma coisa me parece certa: o mundo de hoje está todo ele híbrido. Podemos gostar mais ou menos disso, mas temos de aprender a navegar neste mar de hibridez, sem nos afogarmos nas marés da multiplicidade e da rapidez de tantas solicitações misturadas. Neste tempo, discernir talvez seja o verbo mais importante (os Exercícios Espirituais podem ajudar), para cada um conseguir entender melhor o que lhe está a ser pedido em cada fase da vida e poder agir de acordo com essa Vontade.
Fotografia de Laszlo Daroczy – Wikicommons
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.