Lar doce lar. Felizmente, na maioria dos casos em Portugal, assim o é: a casa é o local de descanso nas suas variadas formas, desde o convívio com a família que nos energiza, ao sono profundo que as nossas camas nos proporcionam. É este descanso que nos ajuda a acordar com forças para mais um dia.
Lar doce lar. Não para todos, apenas para alguns. Infelizmente, estão identificadas mais de trinta e cinco mil famílias espalhadas pelo país que vivem em condições habitacionais indignas, estando privadas deste descanso que para muitos de nós é tão básico que nos esquecemos do privilégio que temos. Algumas destas famílias vivem ainda em casas abarracadas.
Que dignidade pode ter uma barraca que nem porta tem? Uma barraca feita de pedaços de lixo de antigas construções? Uma barraca onde os serviços de abastecimento de água, saneamento ou de recolha de lixo não chegam?
No documentário “Another Lisbon Story” (2017), sobre um bairro abarracado nas periferias de Lisboa, uma das residentes desabafa “somos pessoas, como qualquer pessoa, como ser humano… não desejo nem a um cão viver nas condições em que nós vivemos”. A necessidade de se afirmar como pessoa é prova de como viver em situações habitacionais de precariedade pode constituir uma violação da dignidade humana.
Outras situações menos extremas, mas mais recorrentes, são situações de sobrelotação, insegurança e de fogos sem condições mínimas de habitabilidade. É difícil compreendermos o quotidiano das famílias que vivem nestas situações, no entanto, é fácil “apagarmos” a consciência desta realidade e seguirmos com o nosso dia a dia. “Se não posso fazer nada porque vou ocupar a minha cabeça com isto? É uma realidade triste, mas extravasa a minha margem de atuação…”. Apagar. Seguir com o dia. Sim, é uma realidade difícil e complexa, mas já procurámos compreendê-la parcialmente?
Outras situações menos extremas, mas mais recorrentes, são situações de sobrelotação, insegurança e de fogos sem condições mínimas de habitabilidade. É difícil compreendermos o quotidiano das famílias que vivem nestas situações, no entanto, é fácil “apagarmos” a consciência desta realidade e seguirmos com o nosso dia a dia.
A habitação condigna para todos não é um ideal, mas sim um direito constitucional da República Portuguesa desde 1976 (artigo 65.º): “1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. O mesmo artigo incumbe o Estado de incentivar e apoiar iniciativas para assegurar o direito à habitação a todos os cidadãos, papel este que é reforçado em 2019 com a Lei de Bases da Habitação.
Na prática, as principais entidades responsáveis pela resolução das carências habitacionais são o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) – entidade pública promotora da política nacional de habitação – e os municípios – responsáveis por identificar as necessidades e soluções ao nível local de forma a obter financiamento junto do instituto e, depois, por disponibilizar as soluções habitacionais. Atualmente, o principal instrumento de políticas para dar resposta às famílias que vivem em situação de grave carência habitacional e financeira é o “1.º Direito – Programa de Apoio ao Acesso à Habitação”.
O programa 1.º Direito é um dos investimentos previstos no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), com verbas associadas de 1.211 milhões de euros para apoio financeiro não reembolsável à promoção de, pelo menos, 26.000 habitações destinadas a situações que estejam assinaladas pelos municípios. O financiamento está limitado às soluções que sejam disponibilizadas (obras concluídas e fogos entregues às famílias) até junho de 2026 – o não cumprimento do prazo pode levar à obrigação de devolução das verbas do PRR.
Esta oportunidade é única na história das políticas habitacionais em Portugal. No entanto, será que no meio das 20 componentes temáticas que este plano de recuperação possui, às quais estão associadas 37 reformas e 83 investimentos, os esforços na componente da habitação ficarão aquém do potencial da oportunidade?
É aqui que entramos. Façamos da necessidade e do direito das famílias que vivem nestas situações uma vontade e ação de todos, criando um movimento cívico que exija uma governação à altura do desafio. É um exercício de criatividade em torno da participação e vigilância. Como é que nos locais que frequentamos (bairro, trabalho, universidade, Igreja, instituições de solidariedade social, voluntariado, …) podemos ajudar na identificação destas situações para que possam ser abrangidas pelo programa? Com os nossos conhecimentos e talentos, podemos contribuir para o desenvolvimento das soluções habitacionais junto das autarquias locais? Que meios de comunicação (jornal, rádio, redes sociais, podcast, …) temos ao nosso dispor para monitorizar o cumprimento do programa e pressionar a aplicação do valor total das verbas designadas à componente habitação?
Com tantas preocupações e prioridades do nosso dia-a-dia, é (infelizmente) contranatura dedicarmos tempo a um problema que não nos toca. Mas é aqui que reside a beleza da compaixão, que não se fica pela consciência e empatia face ao sofrimento do próximo, mas que passa à ação, ao envolvimento com a causa.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.