Há um espaço vazio no céu

O coronavírus assenta bem demais na doença do tempo de que já padecíamos coletivamente antes de dezembro de 2019.

O mundo está esquisito, não está? E não é só o coronavírus. Atravessamos a cidade, cruzamo-nos com residentes e turistas, trabalhadores e passeantes, e sentimos que estamos ali e não; que estamos todos, como é que se diz?, “com a cabeça noutro lado”. Tudo com a alma no bolso, tudo sempre só de passagem, tudo sempre a mil. Atravessamos a cidade e não conseguimos deixar de sentir que há qualquer coisa no ar ainda mais difusa, fugidia e terrível do que o covid-19.

Na sexta-feira passada, fui à Escola do Largo, no Chiado, ver o Marcos Barbosa interpretar Aqui somos todos Lázaros, um monólogo que escrevi para ele há quase dois anos. É um texto louco que mistura teoria e prática de teatro, imigração, emigração e a hipótese de nos redimirmos pelas histórias; como se isso não bastasse, ainda tenta embrulhar tanto assunto difícil num tom de comédia agridoce. O Marcos faz aquilo muito bem, salvando os buracos da peça e iluminando as suas estranhas alegrias— mas não é disso que quero aqui falar. Nessa noite, ao regressar a casa, lembrei-me da primeira peça minha que o Marcos encenou, uma coisa para dois atores chamada Escrever, falar. Uma peça que começou sem título e com muita vontade no dia 11 de setembro de 2001. Sim, nesse exato dia do ataque às torres do World Trade Center em Nova Iorque. Ia rebentar a terceira guerra mundial, o mundo podia estar para acabar, e nós seguíamos de automóvel em direção a uma sala branca, em Tondela, para fazer teatro. Era necessário, era urgente fazer alguma coisa. Lembro-me do silêncio que desceu sobre o snack-bar tondelense quando passaram as imagens dos ataques no televisor preso ao tecto. As pessoas de pé, terrivelmente quietas, a olhar aquilo; não me lembro de quase nada mas lembro-me disso.

“Há um espaço vazio no céu”, escreveu Don DeLillo no Guardian três meses depois. Uma frase simples, tremenda, que fala várias línguas. “Há um espaço vazio no céu.” Segundo o grande escritor norte-americano, a internet e o ciber-capital tinham-nos convocado a “viver permanentemente no futuro” e os terroristas do 11 de setembro queriam “trazer de volta o passado”. Os terroristas viam “algo de intrinsecamente destrutivo na natureza da tecnologia” e usavam-na em conformidade, como “coisa que mata”.

De repente, é como se vivêssemos presos num presente sem fim. Sem memória, sem sonho e sem fim.

Desde então, aconteceu muita história, várias crises, tanta manchete — mas o quê, ao certo? A verdade é que não sabemos bem, que agora tudo corre a uma velocidade impossível e em demasiadas direções. O tempo estilhaçou-se algures: o futuro parece morto e o passado, ultrapassado. De repente, é como se vivêssemos presos num presente sem fim. Sem memória, sem sonho e sem fim. Presos na armadilha do espelho; fechados num presente bidimensional que se repete como um daqueles videozinhos circulares. Será que, no final de contas, o que ocupou esse “espaço vazio no céu” foi o Facebook?

Não estou a comparar as redes sociais com o terrorismo, como é óbvio. Estou só a tentar traduzir o subtexto do tempo, a tentar ler a narrativa do mundo. “Pessoas caindo das torres de mãos dadas”, escreve DeLillo. “Isso faz parte da contra-narrativa.”

Dois homens numa sala branca; duas torres, um vazio. Uma rede em forma de “eu” totalitário; um monólogo como uma rede de vozes. Escrever para quê, escrever porquê? Pronto, cá está a pergunta fatal. A resposta é muito difícil, porque tem a delicadeza da vida autêntica, da experiência mais íntima e misteriosa. E está sempre em cheque porque, no limite, a única resposta é a própria escrita, aquilo que se escreve em concreto, num dado momento. E, pois, claro: não há receitas ou cartilhas, etc. Mas tem de haver espaço para uma pergunta, pelo menos: nos dias de hoje, escrever não implicará dar profundidade de campo ao presente limitado desta nossa época facebookizada, este tempo-sem-tempo onde a História parece estar sempre mais ou menos de quarentena? Escrevermos para escavarmos um futuro, para imaginarmos memórias que nos possam alimentar qualquer coisa parecida com um sonho? A escrita pode servir para atravessarmos o espelho do ecrã para o lado de cá, para reaprendermos o milagre da tridimensionalidade? Nessa noite de sexta-feira, atravesso o Chiado lembrando-me do futurista Almada Negreiros que, no romance Nome de Guerra, nos segreda em maiúsculas: “CADA UM VAI ATRÁS DA SUA IDEIA, OU É A SUA IDEIA QUE VAI ATRÁS DE CADA UM?”

O coronavírus assenta bem demais na doença do tempo de que já padecíamos coletivamente antes de dezembro de 2019. É quase como se, de um momento para o outro, tivessem sido cunhados termos médicos, científicos, para o que já estava em marcha. Sim, de certa forma, a quarentena de “isolamento voluntário” já existia. Não sou dado a tiradas apocalípticas, mas a facebookização da vida está a levar-nos para aí a passos largos. Vivemos cada vez mais em quarentena: quarentenas mentais, afetivas, políticas, espirituais. Escrever tem de ser — também — construir uma contra-narrativa para esse estar geral. Escrever o futuro (poesia), escrever o outro (prosa), escrever a cidade (teatro). Ou corremos o risco de ficar como o Antunes do Nome da Guerra: “DENTRO DA REALIDADE, COM A PORTA FECHADA E SEM CHAPÉU”.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.