Filhos bem sucedidos ou filhos felizes?

Num tempo de tantas facilidades, temos alunos exaustos, deprimidos e sobre-medicados, que comem mal, dormem pouco, mexem-se de menos e apanham pouca luz do sol. Enquanto isto, o foco da escola e das famílias continua assente nas notas que surgem na pauta. Não era já tempo de revermos prioridades?

Tive uma avó que criou cinco filhos no interior alentejano, rural e pobre, onde a luta diária ainda era, tantas vezes, a da sobrevivência. Das coisas maravilhosas que tive possibilidade de fazer, nos últimos anos da sua vida, foi sentar-me a ouvir a sua história. Profissionalmente, tinha já escrito muitas biografias e digerido a beleza de tantas vidas, muitas delas difíceis, num país que, em tão pouco tempo, passou por mudanças tão profundas. Mas olhar nos olhos de uma avó é entender, mais do que a sua história, também a nossa. Aquela que fez dos nossos pais aquilo que foram e, por conseguinte, aquilo que ela fez de nós também.

Como é que se educavam filhos no meio do campo, sem supermercados nem lojas de roupa, sem telefone ou televisão, com a escola mais próxima a cinco quilómetros de distância, mas sem transportes para lá chegar?, lembro-me de perguntar à minha avó. O meu pai e os irmãos sempre estudaram – iam e viam a pé, aprendendo o nome das árvores, os sons dos pássaros, a época dos cogumelos e as plantas preferidas dos coelhos – mas a escola, naquele tempo, não era uma prioridade. Era um privilégio. Importante era que a terra fizesse crescer alimento, para quem trabalhava nela e para os animais que dariam o leite, a carne e os ovos. Era cuidar da saúde e da energia dos filhos, sem contar com remédios, que eram escassos, e era ensiná-los a trabalhar para garantirem a sua subsistência. Era esperar que, depois disso, brincassem até se cansarem, para terem um sono tranquilo, depois do sol desaparecer e até ele nascer outra vez, e era ensinar-lhes a serem bons homens e mulheres, educados, pacientes e humildes, qualidades importantes para uma vida sem sobressaltos.

Como é que se educavam filhos no meio do campo, sem supermercados nem lojas de roupa, sem telefone ou televisão, com a escola mais próxima a cinco quilómetros de distância, mas sem transportes para lá chegar?,

Nessa altura, a educação não era sobre sonhos e talentos, não era sobre aceitação da diferença e inclusão, não era sobre parentalidade positiva, inteligência emocional ou desenvolvimento de múltiplas competências. Não se estudava o grau de insatisfação nem o burnout. Não havia rankings nem PISAs. E não, não estávamos melhor assim, por mais saudosismo que a ideia nos possa causar, em alguma medida. O que sinto, por vezes, é que passámos de um extremo ao outro, e depressa demais. Se, antes, a prioridade era ter alimento para os filhos, hoje somos um dos países da Europa, a par de Espanha e Malta, com a taxa mais alta de obesidade infantil, segundo o Observatório Europeu de Obesidade da Organização Mundial de Saúde (OMS), com todas as consequências, ao nível da saúde, que isso acarreta.

Se a prioridade, antes, era a saúde e a energia para trabalhar, hoje, mesmo com uma medicina tão mais avançada, medicamentos disponíveis e menor exigência física, no dia-a-dia, temos um número impressionante de alunos que assumem não se sentirem bem. Segundo a última análise da OMS aos adolescentes portugueses (do 6º ao 10º ano), há 17,9% de adolescentes que se assumem cansados e exaustos “quase todos os dias”, 12,7% referem dificuldades em adormecer e 5,9% dizem-se “tão tristes que não aguentam”. Noutro estudo da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, que envolveu 6900 alunos do 7º ao 12º ano do Centro, Sul, Algarve e Açores, um em cada quatro alunos apresentava mesmo sintomas de depressão. Um terceiro estudo de 2018 – A Saúde dos Adolescentes Portugueses – revelou que, no mês que antecedeu o inquérito, mais de metade dos jovens tinha tomado remédios para a dor de cabeça, 11,2% para o nervosismo, 9% para as dificuldades em adormecer, 7,6% para aumentar a memória e a concentração e 6,5% para a tristeza.

Ansiedade, depressões, distúrbios alimentares, automutilação e dependência de drogas são problemas em que nenhum pai ou mãe quer pensar, mas que fazem parte do dia-a-dia dos jovens.

Ansiedade, depressões, distúrbios alimentares, automutilação e dependência de drogas são problemas em que nenhum pai ou mãe quer pensar, mas que fazem parte do dia-a-dia dos jovens, num tempo em que há supermercados de lojas de roupa em cada esquina, vários telemóveis por família e televisões em várias divisões da casa, e uma escola para todos, onde já não se passa uma parte do dia, mas o dia inteiro, às vezes 10 horas por dia, e que passou de privilégio a prioridade. Depois dela, ainda há trabalhos e matéria para estudar, se necessário (e parece ser cada vez mais necessário) com os pais ou com explicadores, porque o que parece garantir uma vida sem sobressaltos já não é a educação, a paciência e a humildade, mas as notas que surgem na pauta no final do ano letivo. A escola vive para a nota, e as famílias vivem para a nota também. E o tempo para o bem-estar (onde se inclui brincar, descansar, estar com quem se gosta, passear), e para a educação, numa visão mais ampla da palavra (para o saber estar, respeitar, para os valores, para a autonomia), deixou de ser prioridade. Em muitos casos, esquecemos até o mais básico: comer bem, dormir melhor, exercitar o corpo e apanhar luz solar. Focados na mente, esquecemos o corpo e as emoções. E não é que somos um todo, e a mente não funciona sem um corpo e as emoções em equilíbrio?

É preciso resgatar o básico e questionar as nossas prioridades. Em casa ou na escola, antes de nos perguntarmos de que é que uma criança precisa para um dia ter sucesso profissional, devemos perguntar-nos o que será necessário para a transformar num ser humano saudável e feliz.  (E não é que um ser humano saudável e feliz também tem mais possibilidade de ser alguém mais bem sucedido?). E se a resposta não for evidente, talvez possamos pedir uma ajuda aos avós e bisavós deste país. Depois de tudo por que passaram, e de todas as mudanças a que assistiram, talvez eles sejam as melhores pessoas para nos ajudarem a redefinir algumas prioridades… E vamos ouvi-los falar (com estes ou outros nomes, mais do “seu tempo”) de Saúde, de Equilíbrio emocional, de Bons relacionamentos, de Autonomia e Resiliência, de Valores e de Motivação para viver. Porque é nessa pauta, na verdade, que a vida se joga. É nestas “disciplinas”, antes de quaisquer outras, que, quer em casa, quer na escola, devemos ajudar as gerações mais novas a ter boas “notas”…

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.