«Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos pequeninos.»
A pensar neste primeiro dia de junho que, este ano, será certamente celebrado de maneira diferente, vinha-me esta ação de graças que Jesus faz e que é relatada por São Mateus e por São Lucas. Acredito que celebrar o dia da criança passa por reconhecer que, sim, há muita coisa que nos é revelada de forma muito especial através das crianças; passa por reconhecer que há coisas que, se não fossem elas, não seriam reveladas ao mundo. Pelo menos, não o seriam da mesma forma.
Quando pensava naquilo que poderia ser pertinente partilhar num dia como este, tomei a decisão de pedir ajuda ao Miguel. O Miguel é meu aluno e, segundo as rápidas pesquisas que fiz na internet, pela idade que tem, parece que pode mesmo ser considerado uma criança. Se há coisas que escapam aos sábios e entendidos, mas que tocam as crianças, então diria que vale a pena dar-lhes espaço para que o partilhem.
Quando lhe pedi ajuda, tinha apenas a intenção de o ouvir. Expliquei-lhe que o fazia por causa da proximidade deste dia. No entanto, acho que, no fundo, e apesar de não me sentir uma sábia ou entendida, gostava de criar a oportunidade para que ele me revelasse alguma coisa que me estivesse a escapar.
O Miguel começou por me dizer que vê o dia da criança como uma “oportunidade de homenagear e lembrar todas as crianças do mundo”. Acrescentou, ainda, que “para todas, devia ser um dia especial”. Pode soar só bonito. Eu preparei-me para o questionar sobre isso. Ele percebeu e antecipou-se: “Mas, professora, sei que para algumas não é assim.” Disse-me que nos devíamos lembrar, de forma especial, dessas crianças.
Fiquei interessada em perceber como é que se pode viver bem este dia e aproveitar esta ‘oportunidade’ de que o Miguel falava. Lembrámo-nos de que, se estivéssemos na escola, era possível que tivesse direito a um almoço especial no refeitório. Percebi que, ainda que fosse sensível a esses gestos especiais neste tipo de datas, o Miguel era consciente de que, numa situação como a que vivemos mundialmente, “o mais importante é mesmo ter saúde e ter pessoas que gostam de nós, que nos acompanham e que não nos deixam sozinhos”. Perguntei-lhe se, por causa da pandemia que nos trocou as voltas, o facto de a saúde vir primeiro significava que era mais importante. Rematou, de forma quase imediata, que não. Afinal – explicou-me ele logo a seguir – sermos acompanhados por quem gosta de nós dá-nos e traz-nos saúde. 11 anos? Sim. Só 11.
Fez questão de me assegurar que sabia que simples e descomplicado eram palavras semelhantes, mas que escolheu usar as duas para reforçar a perspetiva dele.
Ainda fez questão de retomar o ‘assunto anterior’ e de me lembrar que até achava que era das crianças que não têm saúde ou que se sentem mais sozinhas que nos devíamos lembrar de forma especial
Achei graça ao facto de o Miguel ter escolhido a palavra homenagear. Associo-a sempre a um ato especial, quase solene. Por isso, aproveitei para ir mais fundo. Partilhou-me que acreditava que as crianças tinham um papel único e que sentia que isso acontecia por terem “ideias simples e descomplicadas sobre as coisas da vida”. Fez questão de me assegurar que sabia que simples e descomplicado eram palavras semelhantes, mas que escolheu usar as duas para reforçar a perspetiva dele. Enquanto o ouvia, apercebi-me de que ele nunca tinha referido o critério da idade como algo determinante para ser criança. Por isso, pedi-lhe que me esclarecesse e o Miguel confirmou-me que “todas as pessoas podem ser crianças.” Soa bonito outra vez, não é? Mas, com a sua simplicidade descomplicada, argumentou que isso pode acontecer se as pessoas não se esquecerem de que, um dia, foram crianças e que, por isso, tiveram uma forma simples e descomplicada de olhar para o mundo.
Não partilho aquilo que o Miguel me revelou por considerar que é uma novidade. Partilho-o porque acredito que nos traz um desafio pertinente – e, até, uma boa forma de homenagem num dia como este. Afinal, trata-se de um convite exigente de nos fazermos pequenos de novo. E, confiando no olhar do Miguel, se a idade não é impedimento, então este convite passa por uma decisão nossa – a de escolhermos fazermo-nos pequenos de novo. Como? Passa por não nos tomarmos como sábios ou entendidos, por nos deixarmos surpreender, por nos maravilharmos com aquilo que ainda nos pode ser revelado e por desfrutarmos enquanto isso acontece.
De forma simples e descomplicada? Acredito que há coisas que nos serão reveladas na medida em que nos saibamos fazer pequenos e que tenhamos por perto ou nos aproximemos de quem nos lembre de que se trata de uma escolha nossa. A propósito disso: obrigada, Miguel.
Fotografia de: Charlein Gracia – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.