À minha frente uma paisagem rural, um caminho de terra no meio de um campo verde, com flores selvagens nas margens, pautado por cruzes de madeira com roupas de criança, cor de laranja penduradas até perder de vista. O sol incide nas camisolas e nos vestidos que oscilam ao sabor do vento, mas o céu está negro, vai chover a qualquer momento. Ao fundo, em segundo plano, o arco-íris que se formou e sinto um arrepio.
Já não estou no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona (CCCB) a ver a exposição internacional de fotojornalismo do World Press Photo 2022, onde esta fotografia que descrevo me transporta para o Canadá. Estou na biblioteca da Universidade de British Columbia em Vancouver, a folhear o livro infantil The Orange shirt story, que conta a história de uma criança indígena que, como tantas outras, foi retirada à sua família para ingressar na escola residencial, onde sofreu maus-tratos, abusos físicos e psicológicos às mãos das freiras que dirigiam a escola.
Estas escolas, financiadas pelo Estado e administradas pelas igrejas, tinham como objetivo doutrinar a cultura euro-canadiana para que as crianças indígenas a assimilassem. Hoje em dia, continuam a ser encontradas valas comuns junto às antigas escolas, que funcionaram entre 1831 e 1996, e estima-se que cerca de 6000 crianças tenham sido mortas. Em 2008, o primeiro-ministro canadiano fez um pedido formal de desculpa aos povos indígenas e em 2022 foi a vez do Papa Francisco reconhecer os horrores perpetuados pela Igreja Católica.
Em 2008, o primeiro-ministro canadiano fez um pedido formal de desculpa aos povos indígenas e em 2022 foi a vez do Papa Francisco reconhecer os horrores perpetuados pela Igreja Católica.
A cor de laranja é a minha favorita, emana calor e envolve-me num abraço quente, são raios de sol que me energizam, e reflete a serenidade de um por do sol. Mas, no Canadá é uma memória do trauma, e é também um símbolo de solidariedade. Todos os anos no dia 30 de Setembro se celebra o dia da t-shirt laranja (Orange Shirt day), onde se relembra as 150.000 crianças indígenas que passaram por estas escolas e o impacto que isso tem até aos dias de hoje.
A escolha desta cor relaciona-se com a história verdadeira que inspira o livro infantil, quando a autora, Phyllis Webstad (1967-), aos seis anos, foi levada para uma escola residencial envergava uma T-shirt que a sua avó lhe tinha dado, de um laranja brilhante. Phyllis conta que as crianças eram lavadas à mangueirada e com lixívia. Quando chegou à escola foi despojada de tudo.
O livro de Phyllis Webstad não é o único, há outros que contam as histórias destas crianças que foram arrancadas às suas famílias só porque eram indígenas. Os livros infantis e as fotografias conseguem traduzir a dor em algo digerível e os movimentos transformam o trauma em ação. Estas vozes alternativas devem ser ouvidas, não apenas no Canadá, mas no mundo, para que a história não seja sempre contada da perspetiva dos vencedores, para que a violência não seja esquecida como se as consequências não continuassem presentes, como se a dor não se tivesse alastrado às gerações seguintes — indígenas ou não.
E quem fala dos que já viviam nos territórios a que os exploradores europeus chamaram Canadá, pode falar de todo o continente americano ou do africano, onde a intervenção dos europeus tem impacto até hoje, ou mesmo do australiano, onde nas disciplinas de História e de Cidadania se aborda a importância das chamadas “primeiras nações” e a sua cultura, bem como as injustiças perpetradas pelos povos invasores.
Fazer reparações passa por reconhecer que se errou, que se prejudicou, e por garantir que hoje se dão as condições necessárias para que as comunidades oprimidas ao longo do tempo não continuem a ser condicionadas sistematicamente. Além de pedir perdão, reparar significa um esforço ativo em garantir que os sucessores deste sistema não continuam a beneficiar dele à custa destas minorias. Fazer reparações é ter empatia. É construir soluções conjuntas onde se dão oportunidades e se promove a equidade e a inclusão destas comunidades e das suas vozes para que as futuras gerações compreendam que só conhecendo bem o passado é que é possível construir um futuro conjunto.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.