Creio que não existe, no espaço musical ocidental, nenhuma figura que se compare a Fairuz em termos de difusão. Sem dúvida que não faltam nomes conhecidos: Frank Sinatra (quem não sabe trautear, pelo menos, o «New York, New York»?), Edith Piaf (e o seu «ô rien de rien»), a «Bohemian Rhapsody» ou o «We are the Champions» de Freddy Mercury enchem qualquer estádio, é certo; e, entre nós, o nome de Amália está-nos tatuado na memória. No entanto, podem passar-se dias sem que os oiçamos, nem na rádio, nem na televisão. Com Fairuz não é assim. Digamos de forma redonda: ela é omnipresente no médio-oriente. Egipto, Jordânia, Síria, Líbano: basta ligar a rádio pela manhã, em qualquer estação, ou estar atento ao que ouvem os vizinhos no trânsito, e lá está ela. Inconfundível. Mas, o que tem esta mulher de tão especial que justifique tamanha popularidade? Como explicar que uma artista octogenária continue a ser a voz da manhã de uma região tão considerável do mundo, e aplaudida por ouvintes de todas as idades?
De certo modo, Fairuz foi a porta-voz de uma geração dourada que renovou a música árabe contemporânea. Os compositores Assi e Mansour Rahbani começavam a dar os primeiros passos na descoberta de uma linguagem musical nova, (um pouco como António Carlos Jobim e Vinicius de Moraes fizeram no Brasil), tipicamente árabe, mas curiosamente também muito «ocidental». Havia, nas suas composições, algo de cinematográfico, grandioso, plástico e expressivo, mas também de jazzístico, com grande liberdade harmónica, tudo isso entrelaçado com a enorme riqueza rítmica e melódica da música tradicional árabe. Desse encontro entre a expressividade do cinema com o lirismo árabe, e entre a inventividade do jazz com o ritmo da música tradicional, resultou, de facto, uma música própria. E foi na voz de Fairuz que esta «nova língua» ganhou vida.
Por outro lado, é importante recordar que Fairuz foi também a voz de uma certa forma de resistência, não tanto partidária, mas humana. Optando por não se associar a nenhuma facção política, Fairuz não prescindiu de cantar as dores de um povo em guerra e a urgência de construir a paz. De algum modo, ao falar da experiência humana, Fairuz tornou-se familiar de todos. E se isso é verdade do ponto de vista político, não o é menos do ponto de vista religioso. Católica maronita, Fairuz inclui com frequência temas religiosos nos seus álbuns. Curiosamente (ou não), isso não a tornou inaudível nem indesejável para um público não-cristão (muçulmanos, druzes, etc.). Como?
Eu sou do meu amado,
E o meu amado é meu.
Ó pássaro branco
Cessa de fazer perguntas.
Que ninguém se insurja
Que ninguém se ofenda:
Eu sou do meu amado,
E o meu amado é meu.
O meu amado chamou-me
Disse-me que o inverno partira.
A pomba regressou,
A macieira floriu.
À minha porta
Estão o nevoeiro e a aurora.
E, nos teus olhos,
A minha primavera
iluminou-se e fez-se bela.
O meu amado chamou-me
E eu fui ao seu encontro
sem hesitar.
Roubou-me o sono,
Roubou-me a serenidade.
Eu sigo no seu encalço
E o seu caminho
Conduz à beleza.
Ó sol de amor,
tece a nossa história.
Apenas como ilustração dessa arte rara de Fairuz, avanço com esta canção clássica da artista libanesa, «Ana La Habibi» (Eu sou do meu amado). A pergunta que convém fazer de imediato é: de que fala o poema?
Numa primeira leitura, o poema leva-nos ao coração de uma mulher profundamente apaixonada e da alegria que sente pelo regresso daquele que ama. Nada parece indiferente ao que entre eles se passa: os pássaros desassossegam-se, os jardins florescem, o inverno dá lugar à primavera. A alegria parece de tal modo incontrolável que a poetisa cora, temendo que os sorrisos causem escândalo.
A humanidade descobre alguma coisa de Deus na hora de fazer versos.
Numa segunda leitura, seria de perguntar de que modo o poema interage com o contexto. Será que o poema diz a mesma coisa a um leitor numa situação de angústia, ou a outro que viva num período gozoso? Por quem suspira alguém perseguido? Numa leitura contextual, o poema pode ganhar uma dimensão simbólica e, até, política, onde «inverno» e «primavera» se tornam nomes de estações históricas de guerra ou paz (e suas variantes), e o «amado» concentra debaixo do seu rosto promessa e utopia.
Finalmente, uma terceira leitura faz-nos cair na conta de que este poema dialoga com outro texto: o Cântico dos Cânticos. Também nesse texto bíblico ouvimos os suspiros de uma mulher à espera do seu amado. Postos lado a lado, um e outro poema fazem-nos pensar que há algo de sagrado a circular entre aqueles que se amam. A humanidade descobre alguma coisa de Deus na hora de fazer versos.
Longe de estabelecer uma «hierarquia de leituras», o poema cria uma constelação de significados: suspiro de quem ama, angústia de quem espera, alegria de quem contempla. Curiosamente, a voz de Fairuz deixa-nos ouvir esses ambientes, sendo ao mesmo tempo sensual, suplicante, serena. Ao fazê-lo, Fairuz toca-nos por dentro. E é talvez por isso que, mesmo sem sabermos árabe, percebemos o que nos quer dizer. Fairuz canta-nos. A sua voz contém todo o poema.
Nota: Não resisto a imaginar como seria uma conversa entre a Páscoa e este poema…
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.