Este não é mais um texto sobre 2020

Ser cristão dá trabalho. Parece que os filhos nos dificultam o caminho, mas não. Os filhos obrigam-nos a recentrar as nossas vidas, a procurar respostas, a limar arestas e a corrigir incoerências.

Este não é mais um texto sobre 2020. É sobre educar os filhos na fé. Mais divertido, vá. Ora, devem existir poucos desafios tão exigentes para os pais como este. Desde as mais básicas lições de catequese, passando pela noção de pecado, de bem e de mal, da importância da missa, dos sacramentos e da nossa fidelidade com a vida cristã. Os nossos filhos estão sempre a ver onde encontram falhas, faltas, respostas certas e caminhos lineares. E estão sempre atentos, as pestes, às nossas escorregadelas. São os video-árbitros da nossa vida cristã e nós, que passamos a vida em fora de jogo, não temos como nos abrigar do seu implacável juízo.

Quando Jesus nos entrega um filho nos braços e nos pede para lhe darmos a conhecer Deus, através do Seu Filho, com a ajuda do Espírito Santo, finge que não sabe perfeitamente que nós não acabámos o curso e já nos está a pedir para darmos aulas. A prova da nossa ignorância é o bloqueio insanável no mistério da Santíssima Trindade, a receita certa para o desastre. “Então, mas é para rezar a quem? São todos a mesma Pessoa, como?”, perguntam eles quando percebem que há ali mistério do bom. Mas, como ao Senhor nada é impossível, lá vamos nós.

Quando Jesus nos entrega um filho nos braços e nos pede para lhe darmos a conhecer Deus, através do Seu Filho, com a ajuda do Espírito Santo, finge que não sabe perfeitamente que nós não acabámos o curso e já nos está a pedir para darmos aulas.

Tudo começa nas orações da noite. Parece coisa fácil, mas acreditem que as orações da noite são da maior complexidade. Quando expliquei em voz baixa e ternurenta ao meu filho mais velho, depois das orações, que “agora o Anjo da Guarda fica aqui durante a noite para proteger”, o miúdo recusou-se a dormir sozinho com medo do anjo da guarda. Foi o meu primeiro fiasco educativo nesta área. Resolvi a situação fazendo companhia ao anjo da guarda, e ali ficámos os dois especados a proteger o menino aterrado com o próprio anjo. Até eu fiquei confusa.

Mas a maior dificuldade que tenho sentido é em matéria de pecados. Nós, pais, temos a mania que somos donos da moral, da virtude e da retidão. Os filhos concedem-nos oportunidades únicas para encher o peito sobre bondade e caráter e dar verdadeiras lições de moral a seres ignorantes que nos olham cheios de espanto e de amor. E os pais cristãos são os piores: eles têm as costas largas e o Menino Jesus como bode expiatório. “Olha que o Menino Jesus fica triste porque bateste na mana.” Tretas, quem ficou triste foi a desgraçada da mana. Ou então, numa versão mais hard: “O Menino Jesus está muito zangado contigo porque atiraste o comando para o chão”. Como se Ele não tivesse mais nada que fazer. E é assim, com estas pequenas sentenças, que as crianças são apresentadas a Jesus como um amuado picuinhas que se ofende com tudo ou como um déspota tipo diretor de um colégio interno que coleciona listas de castigos.

A ver pelos ditames da nossa educação e critérios em matéria de pecado, as crianças são dez vezes mais pecadoras do que os adultos. Na verdade, elas estariam definitivamente condenadas se fossemos nós a controlar a porta do Céu, senão, vejamos: elas mentem, batem, roubam chocolate, desobedecem aos pais, escondem as negativas, fazem boas ações a menos, arrancam os cabelos umas às outras, não comem tudo o que têm no prato, dizem palavrões e deitam pastilhas elásticas para o chão. Já nós, não. Nós até separamos o lixo.

A nossa história de falhanço educativo adensa-se conforme os miúdos crescem. O sacramento da Reconciliação, por exemplo, é um dos maiores fiascos parentais.

A nossa história de falhanço educativo adensa-se conforme os miúdos crescem. O sacramento da Reconciliação, por exemplo, é um dos maiores fiascos parentais. Ele é muitas vezes apresentado às crianças como uma oportunidade para fazerem uma lista de asneiras e irem pedir desculpa para que Jesus deixe de estar zangado. Mas há algum adulto que se fosse confessar com esta premissa? Jesus zangado? Alguém que avise os miúdos que Jesus já perdoou tudo muito antes deles entornarem a sopa no chão ou de arrancarem a cabeça da boneca da irmã, se faz favor. A confissão é para nós nos reconciliarmos, Jesus já o fez há muito.

Outra coisa que corre mal e que não nos ajuda como pais, e digo isto sabendo os riscos que corro, é a Bíblia. Desculpem… mas convenhamos que o Antigo Testamento não é muito amigo dos pais nesta empreitada de educação (nem imagino o que devem passar os colegas judeus): Caim mata Abel, Abraão quase sacrifica o filho, os filhos de Jacob vendem-no a mercadores, há até uma mãe que prefere um filho ao outro (Jacob a Esaú), assim, à cara podre. Como explicar o significado de tudo isto às crianças se nem os adultos percebem? E a serpente, que rasteja porque foi castigada por Deus a comer pó para sempre? Um dos meus filhos escreveu isto num teste de Estudo do Meio sobre a locomoção dos seres vivos. Enquanto que o Novo Testamento é para menores de 12, estou convicta de que o Antigo é mesmo para maiores de 18. Percebi isto ao quarto filho e depois de uma dúzia de Bíblias ilustradas. Por isso, pais, não leiam o Antigo Testamento aos vossos filhos pequenos, a menos que saibam explicar que Adão e Eva não existiram mesmo, de carne e osso, ok?

E a missa? Semana após semana temos a aventura da missa. Estou convicta de que esta deve ser a questão teológica mais complexa de sempre: deve ou não obrigar-se os miúdos a irem à missa? Pois não sei, e na dúvida obrigo. Mas no outro dia vacilei e deixei o meu filho mais novo ficar em casa. Pois não imaginam o quanto ele ficou feliz: agarrou-se ao meu pescoço e não parou de repetir “obrigado, mãe!”, enquanto me enchia de beijos. Acho que ninguém viu e tenho a certeza que Nosso Senhor se fartou de rir com aquele sacrilégio. Mas aquele abraço de urso pôs-me a pensar e concluí: a missa, meus caros, é uma enorme seca para quem não percebe o seu significado, não participa e não vislumbra o milagre a que se assiste. Ora, as crianças fazem parte deste enorme grupo e é por isso que não param um segundo quietas, com o semblante carregado, em meditação profunda, absorvendo cada palavra das leituras. Elas não percebem nada. E nós, pais santos, também não explicamos grande coisa porque também não percebemos grande coisa. Há aqui um caminho a fazer. Dos adultos, claro.

Ser cristão dá trabalho. Dá trabalho aprender, rezar, fazer, ensinar, procurar e participar na construção das obras para as quais Nosso Senhor nos convoca. Parece que os filhos nos dificultam o caminho, mas não. Os filhos obrigam-nos a recentrar as nossas vidas, a procurar respostas, a limar arestas e a corrigir incoerências. Não somos nós que os guiamos, são eles que nos puxam e ajudam a crescer (exigem). A nós, é pedido que não os estraguemos, que não lhes apresentemos imagens erradas de Deus mas apenas a do Deus misericordioso e de amor. Educar os filhos na fé, exige o nosso crescimento na fé. Tudo o resto, nos é dado por acréscimo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.