Este mês conheci o Padre Américo

Que a voz desta figura maior do catolicismo português seja o enunciado de um exame de consciência coletivo sobre o modo como nós, católicos, falamos do pobre e da pobreza.

Começo com uma declaração de interesses: conheço o Luís Leal, jovem professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa (UCP), em muito considero o seu percurso académico e ambos pertencemos ao Centro de Estudos de História Religiosa (da mesma Faculdade e Universidade). Esta instituição publicou recentemente a sua tese de doutoramento intitulada Padre Américo Monteiro de Aguiar: um «teólogo da ação» no Portugal Contemporâneo. É sobre ela que incide o texto de hoje. Não pretendo fazer um resumo da mesma, mas expor algumas ideias soltas que a sua leitura me tem suscitado.

Este estudo do Luís Leal é representativo de um estilo de investigação que pessoalmente me apraz: o seu objeto de análise foi trabalhado como uma certa tradição culinária ensina a cozinhar o peixe, isto é, com um tempero suficientemente sóbrio para não ofuscar o sabor próprio do peixe. Ao invés de subterrar a voz do Padre Américo num «cientifiques» rebuscado, o autor optou por abundantes citações. Não deixou, naturalmente, de as inserir num jogo de ecos entre o que o Padre Américo afirmou e o que afirmou um certo e importante filão teológico, que fez do «pobre» uma chave hermenêutica para a teologia e vice-versa.

Esta obra põe a descoberto que esse filão teológico tem sido pelos séculos dos séculos existente e, ao mesmo tempo, subestimado. Se focarmos a lente do microscópio, verificaremos que tem havido distendida pelo tempo uma pequena comunidade de teólogos que fizeram uma «teologia da rua» (caro leitor, estou aqui a jogar com a expressão «Obra da Rua»). É nele que se inscreve o papa Francisco e talvez por isso tudo nele pareça tão inédito. No entanto, o que objetivamente terá mudado é a marca da máquina de fazer teologia. Aconteceu que uma corrente teológica pouco valorizada pela instituição fez-se instituição em Francisco.

Parabéns, Luís, por tão bem nos ofereceres o percurso de um homem que começa por ser vendedor numa loja de ferragens (sendo de uma família rural até abastada) e que acaba por ser a personalidade com o mais participado funeral alguma vez realizado no Porto.

Procurando resumir o esforço retrospetivo que a investigação do Luís Leal realiza, verificamos que foram os mesmos teólogos que se dedicaram a definir o mistério da Trindade aqueles que de algum modo se dedicaram a definir o mistério do pobre: São Basílio de Cesareia, São Gregório de Nazianzo, São João Crisóstomo, Santo Ambrósio (todos estes no século IV sensivelmente)… É curioso notar-se que Santo Agostinho, na sua extensíssima obra, pouco fala sobre a pobreza e a riqueza, o que em parte pode explicar a razão pela qual o processo de institucionalização da teologia cristã tenha deixado de fora esta instância de reflexão.

O Luís recorda-nos que o Padre Américo é um teólogo. Já por aí se disse que o melhor da teologia portuguesa está na sua poesia, mas possivelmente estará também nesta teologia da rua. Não obstante eu não gostar deste tipo de campeonatos e de slogans, gostaria de dizer que, assim sendo, o Padre Américo Monteiro de Aguiar não é só um teólogo da ação, é provavelmente um dos maiores teólogos portugueses do século XX.

Parabéns, Luís, por tão bem nos ofereceres o percurso de um homem que começa por ser vendedor numa loja de ferragens (sendo de uma família rural até abastada) e que acaba por ser a personalidade com o mais participado funeral alguma vez realizado no Porto. Que a voz desta figura maior do catolicismo português seja o enunciado de um exame de consciência coletivo sobre o modo como nós, católicos, falamos do pobre e da pobreza.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.