Estado de direito, popularidade e cheerleaders

O estado de direito não se dá bem com a justiça-popular-imediato-intuitiva. Aliás, aquilo que constitui o estado de direito é precisamente o facto de não depender da vontade da maioria, mas de procedimentos próprios de aprovação.

A defesa do estado de direito significa isso mesmo: a defesa de um Estado, de uma sociedade, que se rege pelo direito. O famoso rule of law. Porque é que é impopular? A melhor forma de o compreender é recorrermos ao significado literal da palavra “popular”: algo que é do agrado do povo.

Falar de rule of law significa falar do cumprimento de regras e de normas, da preservação da previsibilidade jurídica, do respeito pelos procedimentos e pelas inevitáveis durações associadas. Tudo muito pouco empolgante, para dizer o mínimo. E ainda nem chegámos à pior parte, sobre o que o rule of law impede e exclui: as situações de “justiça-popular-imediato-intuitiva.” (Caso houvesse dúvidas, a expressão é nossa.)

O que é a justiça-popular-imediato-intuitiva? É o sentido de justiça que, enquanto povo e comunidade, partilhamos e desejamos ver aplicado de forma mais ou menos imediata. Podemos não o saber delimitar concretamente, mas sabemos identificá-lo quando se manifesta. Nomeadamente perante os casos mais escandalosos de corrupção ou diante dos crimes mais repugnantes. Nessas situações gritamos por justiça, não aquela dos magistrados e dos prazos de prescrição, mas a que vem de dentro, das nossas entranhas, da nossa intuição.

O estado de direito não se dá bem com a justiça-popular-imediato-intuitiva. Quer dizer, afirmar que não se dão bem é eufemístico, porque na verdade são incompatíveis. Aliás, aquilo que constitui o estado de direito é precisamente o facto de não ceder a intuições momentâneas, mas a normas previsíveis; não depender da vontade da maioria, mas de procedimentos próprios de aprovação; não ser imediato, mas obedecer antes a momentos e prazos próprios. Tudo ao contrário.

Aliás, aquilo que constitui o estado de direito é precisamente o facto de não ceder a intuições momentâneas, mas a normas previsíveis; não depender da vontade da maioria, mas de procedimentos próprios de aprovação; não ser imediato, mas obedecer antes a momentos e prazos próprios.

Na esfera pública, há quem explore esta incompatibilidade. Um exemplo interessante é o chamado “populismo penal”, presente em diferentes quadrantes ideológicos. No fundo, é um discurso político que propõe moldar o direito à imagem do nosso sentido intuitivo de justiça. Está disponível para todos os gostos: há quem peça penas mais pesadas e punitivas, e há quem clame por perdões Robin Hood-escos feitos à medida. Mas não é só na política penal que se explora a incompatibilidade entre o estado de direito e o nosso sentido intuitivo de justiça. Aliás, os casos mais flagrantes encontram-se nas campanhas avassaladoras das redes sociais, que rapidamente pulam para os meios mediáticos, e que são capazes de atropelar qualquer pretensão de rule of law. Fazem-no com boas intenções e em nome da justiça. Estas sim, são empolgantes, potencialmente imediatas e capazes de produzir resultados. Capazes de fazer justiça. São saborosas e emocionantes. Têm todos os ingredientes que o estado de direito não tem.

Só podemos ter um. O estado de direito ou o outro (“estado de emoções”?). Qual queremos? Não pretendo justificar a minha escolha, apenas apresentá-la: apesar de não ser o mais romântico e ser o campeão das desilusões, escolho o estado de direito. Apesar dos seus limites, é melhor que a alternativa, que efetivamente consiste em ficarmos à mercê dos ventos dos tempos e das inclinações do povo. É melhor do que entregarmo-nos à tirania da maioria, por mais bondosa que a julguemos.

Bom, não me lembro de muitas coisas menos populares do que declarar que as pessoas devem contrariar os seus legítimos ímpetos de justiça. Mas talvez possamos encontrar algum conforto no facto dessa impopularidade estar no cerne do ideal do estado de direito. É isso que o caracteriza e é isso que o torna indispensável. Por isso, quem quiser defender o rule of law, e serão sempre precisos uns quantos – sobretudo num tempo de crescentes reivindicações identitárias – tem de aceitar a sua inevitável impopularidade. Não há como escapar. É comum aconselhar quem tem medo a comprar um cão. Ora, a quem tem medo de ser impopular, sugiro que se inscrevam na equipa de futebol americano e namore com uma cheerleader, ou vice-versa. Tanto quanto sei, é a melhor receita para se tornar popular. Mas que não seja a impopularidade a lançar o estado de direito fora.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.