Sabemos que o sangue e o clã têm peso político, sabemos que as convicções religiosas e morais influenciam decisões e modelos políticos, e é difícil ignorar a presença da economia e do desejo de poder na gestão da coisa comum. Nas últimas décadas, tornámo-nos também conscientes do impacto da comunicação social na vida colectiva, mostrando que a informação/opinião são ingredientes políticos fundamentais. Talvez nem sempre seja fácil quantificar o peso de cada uma destas dimensões na vida política, e nem sempre é claro o modo como se influenciam mutuamente mas, de um modo geral, sabemos que essas forças estão em jogo. Portanto, nada do que acabámos de dizer é novo. Clã, ideologia, economia, poder e informação são pilares incontornáveis da organização política de uma comunidade. A nossa pergunta é: até que ponto o entretenimento se está a tornar num factor determinante do modo como vivemos em sociedade? Será isso trágico? Estaremos cientes dos riscos?
Em sentido próprio, o entretenimento é uma actividade/ evento que envolve um «objecto» e um público, e tem como finalidade ocupar o tempo livre com satisfação, seja através de uma satisfação intelectual, estética ou emocional. Ir a um museu, ver um documentário, ler um livro; ir a uma exposição, ir a um concerto, assistir a uma peça de teatro, ouvir rádio; seguir uma competição desportiva ou usar videojogos: todas estas actividades envolvem um «objecto» e estimulam uma dimensão humana importante. Não é por acaso que todas as culturas, desde a antiguidade, desenvolveram as suas próprias formas de entretenimento, com frequência de forma profissional, gerando por isso uma pequena (ou grande) indústria. Mas o impacto do entretenimento não se fica por aí.
O livro de Guy Debord, La Société du Spectacle (1967) sinaliza precisamente que o entretenimento tem um alcance político considerável. Resumidamente, a obra atualiza a crítica à política do panem et circenses («dai pão e circo ao povo»), defendendo que hoje, como ontem, o espetáculo é uma forma de alienação. Controlado pelos grandes proprietários e agentes políticos, o espetáculo mantém a população asténica e acrítica, incapaz de compreender que a satisfação produzida pelo entretenimento esconde uma desigualdade crónica e injusta. Ao seduzir-nos, o espetáculo torna-nos reféns da máquina que governa a tela.
Debord tem razão ao apontar o alastramento do espetáculo nas sociedades contemporâneas. A indústria da informação é cada vez mais info-entretenimento; a educação é cada vez mais pedagogia lúdica; a demagogia política há muito que se refugiou na encenação, no espetáculo e no marketing; a tecnologia encontrou no entretenimento um motivo de desenvolvimento e de investimento; e o que dizer do desporto profissional? Seria também difícil negar que muitos dos «consumíveis» da indústria do entretenimento podem ser, de facto, nocivos para a consciência social. Fake news, agendas mediáticas, arte propagandista: estas coisas existem e têm efeitos bem visíveis, e sem dúvida que haverá grupos de interesse a fabricá-las. Ainda assim, é discutível que o povo (de ontem e de hoje) se satisfaça sempre tão facilmente e com tanta docilidade, como é questionável que todo o espetáculo seja apenas uma forma de domesticação da opinião pública, ou que tudo, na sociedade e na história, se resuma a uma luta entre proprietários e proletários, como repete Guy Debord.
Não faltam sinais de como o modo de fazer política, hoje, está tremendamente próximo das dinâmicas de entretenimento (políticos em horário nobre; redes sociais que se transformam em plataformas de espetáculo político; os índices de popularidade mediática, onde os políticos se confundem com estrelas).
Certamente, as causas desta «migração ocidental» para o território do entretenimento são complexas. Preocupação por uma vida mais equilibrada, interrogações acerca do trabalho (entre obsessão, insatisfação e injustiça), uma nova concepção de prazer (longe do jansenismo religioso). Mas o que se nota também nesta procura é, precisamente, um desejo de bem-estar e de satisfação. Por isso, se procuramos entretenimento não é apenas (nem sobretudo) porque no-lo querem vender, mas porque ele se tornou sinónimo de uma cidade prometida.
De facto, se o entretenimento vende tanto é porque, antes de mais, está enraizado em necessidades profundas. O entretenimento oferece uma resposta a vários anseios: de saber (o bendito ócio dos filósofos), de beleza, de catarse, de descanso, de sociabilização. Mas, acima de tudo, o entretenimento tenta resolver uma ansiedade de fundo: como ocupar o tempo de forma satisfatória? como gastar a vida com gosto?
E eis-nos então regressados à pergunta inicial: que impacto terá o entretenimento na vida política e social? O alastramento do entretenimento no espaço quotidiano mostra que ele, mais do que um produto, um evento ou uma indústria, se está a tornar no nosso modo de vida. Ora, por muito sério ou necessário que seja (e pode ser, de facto), o entretenimento não deixa de ser apenas uma forma de espetáculo. Não faltam sinais de como o modo de fazer política, hoje, está tremendamente próximo das dinâmicas de entretenimento (políticos em horário nobre; redes sociais que se transformam em plataformas de espetáculo político; os índices de popularidade mediática, onde os políticos se confundem com estrelas). E, perante isto, não podemos senão interrogar-nos: não será perigoso condescender que a política se torne apenas num espetáculo, e que o debate se reduza a uma actividade ornamental? Não será trágico que nos tenhamos rendido ao papel de espectadores, ou que estejamos satisfeitos na função de comentadores?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.