Na generalidade, as leituras da Semana Santa são as mesmas todos os anos. O que muda é a atualidade, o mundo, a visão que temos deste, o estado de espírito de quem ouve e de quem partilha, na Homilia, as suas reflexões.
A mim, há muito tempo que me inquietam dois personagens presentes em todos os relatos da paixão: Judas Iscariotes e José de Arimateia. Costumo dizer, talvez inspirado por uma célebre frase de W. Churchill sobre os seus inimigos, que quem traiu Jesus não foram os Fariseus, os Judeus anónimos, nem tão pouco o Império Romano, com os seus famosos oficiais e anónimos soldados. Quem traiu Jesus foi um dos seus mais importantes discípulos, Judas Iscariotes, que tinha a função de ecónomo. Os outros discípulos abandonaram-No, mas quem O traiu e recebeu dinheiro por isso, foi um dos discípulos em quem Ele mais confiava. Porque é que Judas traiu o Mestre?
Não sendo biblista e não tendo competência exegética para analisar cientificamente os textos, só me compete afirmar que a razão se encontra e se explica no facto de Jesus não ter correspondido às suas expectativas. Judas tinha opiniões e convicções sobre aquilo que deveria, ou não, ser feito por Cristo. Ou seja, era mais importante, para ele aquilo que O Galileu lhe poderia dar, do que aquilo que ele mesmo deveria fazer para corresponder às expectativas do Filho de Deus. E, todavia, como está escrito na Paixão segundo São Mateus, quando Judas se apercebeu, por fim, que afinal não tinha de carregar Jesus – nem ninguém! -, com as suas ideias, sonhos, o que fosse, mas, mais que tudo, com a sua vontade, decidiu,
também ele, retirar-se deste mundo.
Judas é o personagem tipo, que carrega sobre Deus, a sua Igreja, o Santo Padre, os bispos e os imensos padres e todos os leigos, a sua vontade, os seus desejos, o seu querer e os seus creres. É exemplo de alguém que, por ter uma função relevante numa comunidade, na Igreja, em qualquer grupo cristão, se acha no pleno direito de exigir que todos cumpram um plano que, afinal, é o seu e não o de todos e se não for feito o que ele defende, então ninguém está, na visão dos Judas deste mundo, a ser fiel na sua missão. Esta pessoa, que acompanhou Jesus em todos os momentos, existe hoje. Basta olharmos à nossa volta e, por certo, encontramos alguém que nunca se questiona sobre qual é a vontade de Deus, que nunca se preocupa se está a equivaler às expectativas que o Senhor tem para si, mas que só vê se o próprio Deus e a sua criação servem as suas necessidades e lhe são úteis. Quando falo da criação, falo de tudo: seres humanos e demais seres vivos, tudo o que faz parte desta casa Comum que habitamos. Tal como Judas, podemos ver que quem assim atua e pensa, mais tarde, ou mais cedo, pode não sair deste mundo pelo seu próprio pé, mas abandona a Igreja, os seus e o próprio Deus e, sempre, com a profunda convicção de que sai porque foram eles que falharam e não foram leais à missão idealizada na cabeça de cada Judas e que só ele sabe que é a correta.
Judas é o personagem tipo, que carrega sobre Deus, a sua Igreja, o Santo Padre, os Bispos e os imensos padres e todos os leigos, a sua vontade, os seus desejos, o seu querer e os seus creres. É exemplo de alguém que, por ter uma função relevante numa comunidade, na Igreja, em qualquer grupo cristão, se acha no pleno direito de exigir que todos cumpram um plano que, afinal, é o seu e não o de todos e se não for feito o que ele defende, então ninguém está, na visão dos Judas deste mundo, a ser fiel na sua missão.
Por outro lado, temos José de Arimateia. Sendo um discípulo escondido de Jesus, por medo dos judeus (cf. Jo 19, 38), não deixa de ser um personagem tipo de alguém que, estando permanentemente anónimo e incógnito, no fundo de cada Eucaristia, no interior de cada Igreja, sofre com as injustiças infligidas a Deus e a sua Igreja, o Santo Padre, os bispos e os imensos padres e leigos. Só aparece e se revela quando é necessário, não para ele, mas para Deus. José de Arimateia foi o único discípulo que quis dar dignidade humana ao Filho de Deus, humanamente morto. E só quando não havia mais ninguém para isso, apareceu. Não para protagonismo, ou sua afirmação própria, mas para dar resposta a uma necessidade dos outros e do Outro, do Senhor, que amava no seu coração. Não para satisfação dos seus sonhos e desejos, mas para que o seu Senhor encontrasse a paz e a dignidade devida a alguém que era amado e amado de verdade.
José de Arimateia foi o único discípulo que quis dar dignidade Humana ao Filho de Deus, humanamente morto. E só quando não havia mais ninguém para isso, apareceu.
Encontramos estes dois personagens há séculos, na nossa vivência de fé, mas enquanto Igreja, o que me faz refletir, mais ainda, é como reagimos face a eles. Que atitude tomamos? Como nos posicionamos? Porque, a bem da verdade, assim, como para o bem e para o mal, ambos foram corajosos à sua maneira, ambos afirmaram o seu pensamento, em liberdade e em sentidos opostos, sim, mas com clareza. Já os restantes discípulos – nós todos! – fugiram, esconderam-se, não tiveram força e valentia para dizerem quem eram, quem seguiam, em quem acreditavam. E hoje, tantos estão aí, igualmente sentados nos bancos das Igrejas, buscando respostazinhas individuais, muitas vezes propondo trocas de favores a Deus, para a resolução dos seus problemitas; ou esperando os gestos rituais, como quem assiste a um ato de magia, sem compreender que a fé é muito mais que isso; ou apenas porque é importante estar em determinados sítios, ser visto, fazer parte de uma estrutura social, mas sem uma verdadeira e profunda ligação a Cristo e, sobretudo, sem uma compreensão do que é ser cristão. Nem Judas, nem Josés de Arimateia. E o que será pior?
Fica a proposta de reflexão para esta Páscoa, para este tempo em que O Ressuscitado nos pede, cada vez mais, que olhemos para Ele, com verdade, com a certeza de que é caminho, que se fez vida eterna e livre.
Santa Páscoa!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.