Celebraram-se, no passado dia 21, os trinta anos da medida de política pública de criação das escolas profissionais e do ensino profissional. Já se qualificaram perto de 400.000 jovens, em cursos de três anos de duração, com componentes de educação sociocultural, científica e técnica.
Nos anos 80, o ensino secundário tinha acabado por cair no modelo do antigo ensino liceal, fortemente seletivo, desligado dos contextos, excessivamente livresco, teórico e abstrato; a clarividência e a rapidez com que se acabou com o antigo “ensino técnico”, industrial e comercial, não se aplicou ao antigo “ensino liceal”, que erradamente foi tomado como a única referência a seguir. A cabeça ficou fixa a olhar um problema (o ensino técnico) e não rodou o suficiente para ver que o problema da seletividade social, da discriminação e da justiça social era bastante mais vasto e não um exclusivo do “ensino técnico”.
O imperativo era ético e político: era preciso combater os níveis de insucesso e de abandono escolar, sem paralelo na União Europeia, promovendo uma educação mais equitativa e uma maior igualdade de oportunidades. A desmotivação e desinteresse dos jovens por um ensino liceal e livresco eram genuínos e profundos, impedindo a realização pessoal de muitos adolescentes. O terreno apresentava-se, assim, favorável à diversificação de percursos após o ensino básico de nove anos.
Deixo algumas notas sobre o que foi feito e que é tão pouco conhecido das novas gerações.
1. Esta medida de política vigorou 30 anos não só pela ação dos sucessivos governos, com diferentes orientações políticas, como pelo compromisso firme de centenas de instituições da sociedade portuguesa, o que lhe confere um cunho peculiar e infelizmente bastante raro. Toda a sociedade foi mobilizada e não apenas o Estado. Hoje existem cerca de 170 escolas profissionais, a grande maioria de iniciativa destas instituições sociais.
2. O modo de formulação de uma política constitui uma componente essencial para o seu sucesso, ou seja, o processo é o produto. Antes de se agir, foi preciso saber-se mais para que fosse possível fazer bem o que era preciso ser feito: (i) em primeiro lugar, ouvir os alunos: procurámos conhecer as expectativas dos adolescentes que frequentavam o 9º ano e realizaram-se inquéritos em larga escala (perto de 9.000 alunos/ano). Concluiu-se que havia uma tendência clara: entre os jovens que queriam continuar a estudar, 24 a 30% queriam fazê-lo num tipo de ensino mais prático e ligado à preparação para o exercício profissional; (ii) era preciso avaliar profundamente a política que estava em marcha, o chamado “ensino técnico-profissional”, o que também se fez ouvindo todos os implicados no processo.
3. Foi preciso depois criar o sonho, formular a esperança, dar-lhe corpo inteiro: cabeça para seguir de modo orientado, braços para acolher todos os atores disponíveis e pernas para andar e não tropeçar na primeira dificuldade.
Para isso, seis decisões de caráter estratégico foram tomadas: (i)optámos por criar um novo tipo de escolas, que chamamos “escolas profissionais”, pois o risco de subverter a inovação era enorme se esta se desenvolvesse seja dentro das escolas secundárias de “matriz liceal”, seja dentro das antigas “escolas industriais”, que o ligariam rapidamente ao modelo do passado; (ii) a sua qualificação seria equivalente ao 12º ano e daria acesso ao ensino superior como qualquer outra modalidade formativa; (iii) a oferta de ensino artístico especializado, música, dança, teatro, artes circenses, … poderia crescer amplamente por esta via, quebrando um ciclo de fragilidade que impedia tantos jovens de descobrirem e seguirem a sua vocação; (iv) estas escolas, públicas e privadas, seriam desenvolvidas por iniciativa de instituições sociais de todo o país, em cooperação com o Estado, sob a modalidade de contratos-programa, dentro de um modelo de “regulação conjunta”, com apoio de fundos nacionais e comunitários; (v) as escolas teriam autonomia pedagógica, administrativa e financeira, com liberdade de contratação dos seus professores e formadores (o que ainda hoje subsiste e constitui um exemplo do que se poderia fazer serena e proficuamente em todas as escolas!).
4. Em termos de execução da medida de política, tomaram-se, ao mesmo tempo, quatro decisões cruciais para que esta iniciativa política não ficasse refém da primeira mudança de governo e dos ciclos eleitorais, (i) foram feitas negociações políticas, discretamente, com a UGT e a CGTP, tendo em vista envolver ambas as centrais sindicais no processo, de modo a assegurar um amplo apoio político; (ii) se houvesse iniciativa local (e ela foi enorme!), os três primeiros anos seriam de crescimento acelerado da oferta, tecendo uma rede nacional de escolas, tendo em vista impedir o fácil “desaparecimento” da medida com a primeira mudança de governo; (iii) criaram-se materiais informativos e apelativos, destinados aos jovens do 9º ano, que foram utilizados em todas as escolas; (iv) era preciso que esta medida de política tivesse na administração central servidores públicos capazes de se dedicarem à sua implementação de imediato, sem hesitações e com todo o entusiasmo e competência necessários, tendo sido criado o GETAP.
O caminho da co-construção política do bem comum, que não é de facto um exclusivo do Estado, revelou ser, no nosso país, um caminho cheio de potencialidades.
O compromisso solidário e cooperativo de centenas de instituições da sociedade portuguesa, de norte a sul do país, esse mesmo país do interior e do litoral, que tantos dizem estagnado, incapaz e dependente, teve um desempenho notável neste empreendimento e tem sido ele o principal sustentáculo desta medida de política, pois nestas três décadas não faltaram os momentos de hesitação dos governos e persistiram dificuldades contínuas em assegurar um modelo estável de financiamento. Estas instituições foram os esteios que seguraram a vinha que tão belo néctar produziu e continua a produzir!
O caminho da co-construção política do bem comum, que não é de facto um exclusivo do Estado, revelou ser, no nosso país, um caminho cheio de potencialidades.
Ou seja, em síntese, somos uma sociedade extraordinária que só não o é mais e mais frequentemente sobretudo porque a elite que domina o Estado abafa a sua iniciativa e cerceia as suas potencialidades, proclamando a dependência e fragilidade das instituições locais, de modo a legitimar a sua arrogância e prepotência, a sua dominação, em proveito próprio e de clientelas particulares. A aliança permanente entre o Estado e as instituições da sociedade, no caso do ensino profissional, tem sido um caminho abundante em árvores e frutos cheios de vigor e qualidade.
Camus disse um dia que os heróis são “gente comum que faz coisas extraordinárias por simples razões de decência”. Foi assim, em Portugal, com tantas instituições e atores sociais implicados no ensino profissional. Estamos, pois, de parabéns.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.