“Ensinar com seriedade é lidar com o que existe de mais vital num ser humano”

Se, como sociedade, estimarmos o ensino – por o consideramos requisito da preparação das novas gerações e, por via dela, do bem-comum –, devemos indagar as razões do seu evitamento.

As palavras que compõem o título deste texto foram ditas por George Steiner, crítico literário e professor, que escreveu As lições dos mestres. Passaram do livro para o meu pensamento; talvez já as tenha usado sem referir o autor, mas julgo que ele me perdoaria de quase o plagiar se lhe recordasse, parafraseando o carteiro de Pablo Neruda, que as palavras não são de quem as escreve, mas de quem precisa delas. Deveríamos sentir necessidade destas palavras, porque traduzem, de modo exacto, o que muitos têm dito, ainda que, por alguma razão estranha, seja com frequência esquecido ou negado: materializando-se o ensino na relação entre professores e alunos, com vista ao aperfeiçoamento destes, a responsabilidade daqueles é enorme. Será a consciência dessa responsabilidade que afasta do ensino quem já é professor ou gostaria de o ser?

1. FALTAM PROFESSORES nos sistemas educativos, os números revelados em estudos credíveis devem ser encarados com apreensão. A situação é crítica em diversos países ocidentais, incluindo a Finlândia, reiteradamente apresentada como paraíso de aprendizagem. Explica-se que o seu segredo estava no ensino, cujo prestígio social e incentivo intelectual chamava os melhores estudantes, a formação para a docência seria de alta qualidade e a entrada na carreira obedeceria a uma criteriosa selecção. De modo geral, a profissão parece ter deixado de ser atractiva, quer para aqueles que a abandonam ou que, ficando, desinvestem dela, quer para aqueles que a poderiam escolher.
As medidas, de âmbito supranacional e nacional, destinadas a valorizar o ensino, bem como a qualificar e motivar para o seu exercício, pouco ou nada alteram a situação, de modo que a premência de manter os sistemas a funcionar parece não deixar alternativa ao aligeirar dos critérios de entrada na profissão e à pouca exigência da formação. Descarta-se, depreciando-se, o que robustece a acção autónoma do professor; privilegia-se, elogiando-se, o que é estritamente essencial à execução tecnicista. Isto sucede ao mesmo tempo que se enaltecem os professores: eles importam, repete-se, são o principal factor de sucesso na aprendizagem, são figuras centrais nos sistemas, têm um papel insubstituível na sociedade.
Neste cenário, assaz confuso, os profissionais dignos do nome, vão sendo substituídos por não profissionais e por sofisticados recursos tecnológicos. A sua designação passa a ser “guias”, “orientadores”, “mediadores”, “facilitadores”… e, em tempos mais recentes, “colaboradores”. Esta última, saída da excelsa lógica do empreendedorismo, nega-lhes o vínculo institucional e, mais grave, deturpa-lhes a identidade.
Se, como sociedade, estimarmos o ensino – por o consideramos requisito da preparação das novas gerações e, por via dela, do bem-comum –, devemos indagar as razões do seu evitamento. As mais vulgares prender-se-ão com os salários, que não a dignificam como deveriam; e com a instabilidade e a dificuldade de progressão na carreira; com a burocratização e a digitalização, que dificultam a relação pedagógica; com a intervenção de parceiros externos, que tende a sobrepor-se à competência docente; com a avaliação do desempenho, determinada por parâmetros alheios a essa competência… Mas há razões que se situam num nível de reflexão menos óbvio, buscando uma compreensão aprofundada do que significa ensinar.

Descarta-se, depreciando-se, o que robustece a acção autónoma do professor; privilegia-se, elogiando-se, o que é estritamente essencial à execução tecnicista. Isto sucede ao mesmo tempo que se enaltecem os professores: eles importam, repete-se, são o principal factor de sucesso na aprendizagem, são figuras centrais nos sistemas, têm um papel insubstituível na sociedade. Neste cenário, assaz confuso, os profissionais dignos do nome, vão sendo substituídos por não profissionais e por sofisticados recursos tecnológicos. A sua designação passa a ser “guias”, “orientadores”, “mediadores”, “facilitadores”… e, em tempos mais recentes, “colaboradores”. Esta última, saída da excelsa lógica do empreendedorismo, nega-lhes o vínculo institucional e, mais grave, deturpa-lhes a identidade.

2. ESSA BUSCA deve ser feita no pressuposto de que o ensino é uma profissão intelectiva, contribuindo, de maneira singular, para humanizar, tocando o inefável do que é ser-se humano no mundo. Recupero seis ideias que nos podem ajudar a delinear uma tal busca, que se afigura inadiável, sob pena de os sistemas educativos, que conseguimos edificar com tanto esforço e dedicação, se desmoronarem, se desfazerem, se dissolverem… como mostrou a UNESCO num marcante relatório de 2016 e ao qual não tem sido dada a devida ponderação.

Essa busca deve ser feita no pressuposto de que o ensino é uma profissão intelectiva, contribuindo, de maneira singular, para humanizar, tocando o inefável do que é ser-se humano no mundo.

Primeira ideia: a imprescindibilidade de educar. Como lembrou, George Gusdorf (1963/1967, p. 38) “a educação é uma moldagem do homem pelo homem (…). Se abandonarmos uma criança, é possível, se ela encontrar um meio natural onde se possa alimentar, que o seu corpo se desenvolva, mas o crescimento orgânico não é acompanhado por um crescimento mental”. Passando para a escola, acrescenta Inger Enkvist (2016, p. 41), “educar significa oferecer aos alunos a possibilidade de se converterem em algo mais do que eram antes de entrar” nela.

Segunda ideia: ensinar é uma vertente privilegiada da tarefa de educar. Logo, percebe-se que George Steiner (2011, p. 25 e 88) tenha sublinhado que “ensinar com seriedade é lidar com o que existe de mais vital num ser humano. É procurar acesso ao âmago da integridade de uma criança ou de um adulto”. O professor, acrescenta, “tem nas mãos o mais íntimo dos seus alunos, a matéria frágil e incendiária das suas possibilidades”, por isso, “ensinar sem uma grave apreensão, sem uma reverência perturbada pelos riscos envolvidos, é uma frivolidade. Fazê-lo sem considerar as possíveis consequências individuais e sociais é cegueira”.

Terceira ideia: estando em causa a formação, é preciso tudo fazer para evitar desvios deformadores. Por isso, Thomas De Koninck (2003, p. 11) retomou a pergunta de Charles Dickens: “o que dizer das centenas de milhares de espíritos que foram deformados para sempre pelos inaptos insignificantes que pretendiam formá-los?”. É que, voltando a George Steiner (2011) “o mau ensino (…) que, conscientemente ou não, é cínico nos seus objectivos puramente utilitários, é ruinoso. Arranca a esperança pela raiz. O mau ensino é, quase, literalmente, criminoso e, metaforicamente, um pecado”. Sublinha Inger Enkvist (2016, p. 23): “um professor medíocre prejudica os seus alunos e pode fazê-lo, às vezes, para sempre”.

Quarta ideia: não devemos, portanto, admitir a existência de pseudoprofessores. Continuando com a autora citada, “um país que aceita ter professores de baixo nível, que não os capacite e forme adequadamente deve saber que está dilacerando as suas crianças e jovens”. A educação que aí acontece “parece estar encurralada num círculo vicioso: [para os cursos de formação de professores] entram estudantes com notas baixas; vêem a profissão como um qualquer posto de trabalho, comparam vantagens e inconvenientes; por o salário ser baixo não exigem grandes esforços a si mesmos e negam continuar a formar-se. Isto leva a que eduquem mal a geração seguinte, e daí emergem professores que pensam do mesmo modo” (Enkvist, 2016, pp. 23 e 28).

Quinta ideia: serão raros, contudo, os professores que têm perfeita consciência do que está em jogo no acto de ensino. Explica George Steiner (2011) que alguns, sem grande entendimento dos prejuízos que causam não são mais do que “amigáveis coveiros”. Por isso, Jorge Larrosa (2019) tem defendido o ensino como um ofício “para o que as nossas mãos são feitas”. Convida, em concreto, a pensá-lo a partir da experiência artesanal, vendo nele, de acordo com o sentido que se lhe atribui, aquilo que somos e aquilo em que nos torna.

Sexta ideia: essa consciência pode ser, em princípio, formada. Para isso, ainda recorrendo a Larrosa, além da estrutura formativa e do seu conteúdo, há que dispor de tempo para a dialéctica que o pensar e o agir requerem, há que libertar o tempo da urgência de produção de (pseudo)professores, destinada a fazer funcionar um sistema que vai colapsando. Não sendo, porém, a formação garantia, a selecção constitui um elemento segurador. Leia-se Sebastião da Gama, 1958/1993: “devo dizer que acho não só justificável como ainda e, principalmente, necessária e honesta a severidade em qualquer exame para professor. Para se salvar um homem podem-se perder mil (…) entregam-se centenas de crianças a um incompetente.”

Em relação à pergunta que coloquei ao início deste texto, derivada do seu título, há que pensar em respostas que vão além da trivialidade com que o ensino é encarado, redundando as mais das vezes na resposta imediata a solicitações distantes das educativas ou na obtenção de resultados de aprendizagem pré-estabelecidos. O que está em causa no ensino é, como diz Steiner, “lidar com o que existe de mais vital num ser humano”, daí que um professor consciente dessa responsabilidade tenha dificuldade em estar num sistema, numa escola que a secundarize ou despreze. É compreensível.

 

Referências:
De Koninck, Th. (2003). A nova ignorância. Edições

Enkvist, I. (2016). El complejo ofício del profesor. Fineo Editorial.

Gama, S. da (1958/1993). Diário. Ática.

Gusdorf, G. 1963/1967 Professores para quê? Morais Editora.

Larrosa, J. (2019). Esperando no se sabe qué. Sobre el oficio de profesor. Editorial Candaya.
Steiner (2011). As lições dos mestres. Gradiva.

UNESCO (2016). Repensar a educação: rumo a um bem comum mundial? UNESCO Brasil.

https://digitalis-dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/44222/1/Repensar_a_educacao.pdf

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.