No domingo do Dia Mundial dos Pobres, assisti a uma cena típica, mas assinalável, à saída da missa. Era de noite e a igreja estava cheia, com muita participação dos paroquianos. Tínhamos acabado de ouvir uma homilia bastante encorajadora contra a cultura do descarte. Enquanto esperava por uma pessoa à porta, observei um pedinte a azafamar-se entre os que iam saindo. Algumas pessoas simplesmente ignoraram-no. Outras, certamente cientes do que tinham acabado de ouvir, sorriram-lhe e ofereceram alguma esmola. Quando o interpelei para perguntar se conhecia a organização onde sou voluntário, que presta apoio a pessoas em situação de sem-abrigo, respondeu-me: «Claro que conheço. Já lá fui voluntário.»
Esta situação apresentou-me, na perfeição, os problemas que se colocam à volta da empatia, desde a disparidade entre o discurso e a prática, aos limites da nossa atenção e a superficialidade com que podemos tratar do assunto, desviando-nos, muitas vezes, do essencial. Tal como a esmola não resolve o problema da pobreza, a empatia não se podia esgotar na minha pergunta ingénua, mas prolongar-se num esforço contínuo para compreender a realidade do outro, que é diferente da minha. A empatia é difícil e desinstala-nos, mas é muitas vezes invocada como se fosse uma solução fácil. Se fosse, este não seria o nosso mundo.
(…) continua a haver um conjunto grande de pessoas com as quais não sentimos obrigações morais.
A empatia é um conceito que surge com cada vez mais frequência nas mais diversas discussões sobre justiça, o que comprova algum progresso moral na nossa sociedade – e isto, suspeito, porque somos cada vez mais uma sociedade onde há conforto e segurança. Mas, se assim é, podemo-nos questionar: o que faz com que continuemos a despersonalizar ou desumanizar os outros, como os indigentes, as minorias ou os estrangeiros, mesmo quando temos um sentido de justiça bem formado, quer como indivíduos quer como sociedade?
Se por um lado, a sociedade ocidental tem evoluído bastante na proteção social e na construção de um quadro de direitos humanos, por outro, continuamos a desumanizar, mais ou menos conscientemente, aqueles que não pertencem à nossa comunidade moral – ou seja, continua a haver um conjunto grande de pessoas com as quais não sentimos obrigações morais.
Ou rejeitamos e discriminamos ativamente a pessoa ou a comunidade diferente de nós, que somos de alguma maneira privilegiados; ou simplesmente julgamos que os seus problemas não são os nossos problemas, seja porque confiamos excessivamente no sistema político e de proteção social, seja porque, simplesmente, não queremos saber.
A cada nível de desumanização poderíamos dar uma resposta diferente quanto à sua causa. A da desumanização ativa, por assim dizer, será a persistência de um preconceito, medo ou desconfiança do outro, que é diferente de mim; a causa da desumanização passiva será já uma forma de proteção natural contra o sofrimento alheio, uma vez que já nos custa suportar o nosso próprio sofrimento. Ambas as causas podem ter uma solução. O que nos leva a outra questão.
O que me permite ter empatia por uma pessoa à partida tão diferente de mim, que passou ou passa diariamente por circunstâncias que eu nunca experimentei ou possa vir a experimentar; com alguém que pertença a uma comunidade moral radicalmente diferente da minha? Aqui, como bem explicou o filósofo Richard Rorty, o racionalismo não é suficiente. [1] Não nos basta proclamar a Declaração Universal dos Direitos Humanos ou lembrarmo-nos de que somos todos animais racionais, e que é isso que nos irmana – até porque, como diz Rorty, do ponto de vista filosófico não é claro que isso nos leve a obrigações morais. Na perspetiva deste filósofo, o que faz realmente a diferença é conhecer a história, a realidade particular do outro, com quem tenho de me relacionar.
Nem sempre precisamos de ter passado pelo mesmo que o outro para poder ter empatia; nem sequer precisamos de partilhar o mesmo quadro moral. Mal estaríamos se assim fosse.
Nem sempre precisamos de ter passado pelo mesmo que o outro para poder ter empatia; nem sequer precisamos de partilhar o mesmo quadro moral. Mal estaríamos se assim fosse. O que nos pode mover a relacionar-nos com o outro é precisamente a sua história e um sentido de justiça bem formado – mesmo que para isso seja necessário invocar analogias com quem me é familiar.
Apesar de esta solução dar um papel preponderante às emoções para promover a empatia, ela não descura a importância de uma perceção afinada. As histórias contam-nos não só o caso particular, mas o que muitos na mesma situação vivem, evitando assim as idealizações do pobre, do migrante, da mulher, desta ou daquela minoria.
Estes casos concretos muitas vezes desencadeiam importantes avanços nas políticas para a pobreza, para a inclusão, para a justiça social em geral: assistimos a avanços estruturais ocasionados pelos problemas trágicos com o Serviço de Estrangeiros e Fronteira (SEF) e com o homicídio do cidadão ucraniano, mas também, numa nota mais positiva, no fim da discriminação por orientação sexual na dádiva de sangue, depois de uma denúncia emocional ter sido divulgada.
Mas há muito a fazer a este nível também: é preciso que os sistemas democráticos sejam reforçados e, quando necessário, atualizados, para que ativamente promovam, de novo, ou cada vez mais, o envolvimento dos cidadãos, sobretudo daqueles que vivem sob a ameaça da pobreza e da discriminação – para que também eles sejam ouvidos na mesa onde se tomam as decisões.
Relembro a mensagem do Papa para o dia dos Pobres, em tão grande sintonia com a encíclica Fratelli Tutti: «Os pobres [e por extensão, os excluídos] não podem ser aqueles que apenas recebem; devem ser colocados em condição de poder dar, porque sabem bem como corresponder. Quantos exemplos de partilha diante dos nossos olhos! Os pobres ensinam-nos frequentemente a solidariedade e a partilha.» Foi isso que voltei a aprender nesse domingo à noite.
[1] Rorty, R. (1994) Human Rights, Rationality and Sentimentality, in S. Shute & S.Hurley (eds.), On Human Rights: The Oxford Amnesty Lectures 1993
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.