Em conversa com a fragilidade

“Não sei bem. Estou assim, meia triste. Eu acho que... eu preciso de... preciso de... eu preciso de um abraço!” – disse-o como quem dá um espirro inesperado seguido de uma certa surpresa pelo estapafúrdio.

“O que se passa?” – perguntou-me um certo alguém.

“Não sei bem. Estou assim, meia triste. Eu acho que… eu preciso de… preciso de… eu preciso de um abraço!” – disse-o como quem dá um espirro inesperado seguido de uma certa surpresa pelo estapafúrdio, com os braços estendidos à pessoa com quem conversava por zoom, como se aquele desejo tão profundo e puro pudesse rasgar as barreiras eletrónicas que aparentemente enganam a solidão e a distância.

Não expressei aquela necessidade cravada a espanto com a leveza de quem teve um dia difícil e reconhece que precisa de afeto para pôr cobro aos desafios daquele dia, nem como quem, com a perceção sensível de que precisa de carinho, sendo um ser eminentemente afetuoso, o solicita com a simplicidade de uma criança que pede colo aos pais quando está cansada para andar por seu próprio pé.

Foi algo que veio das entranhas, do âmago, da mais pura das necessidades.

Algo atónita perante a exatidão com que expressei aquela carência, desejando quebrar com a solidão e pedir carinho, propus-me finalmente, ainda que só em passos de infante, a algo de uma beleza e premência extrema: dispus-me a conversar com a fragilidade.

Com a fragilidade, deparei-me diversas vezes ao longo da minha vida, em grande parte estampada em mim, noutras tropeçada na expressão do outro.

Com a fragilidade, deparei-me diversas vezes ao longo da minha vida, em grande parte estampada em mim, noutras tropeçada na expressão do outro.

Lutámos em variadas circunstâncias: foram lutas heróicas, outras um tanto desmoralizadas, umas vitoriosas, outras falhadas (pelo menos perante a minha vil definição de falhanço).

Noutras dessas vezes cruzámo-nos e acenámos cordialmente como dois adversários que reconhecem as habilidades bélicas do oponente, cruzando-se em trajeto de compasso que traça uma circunferência, intentando manter distância.

Já noutras ocasiões, com maior lucidez, conversámos. Foram pequenas conversas sobre as minhas limitações e sobre o quanto a dita fragilidade também me limita, propondo acordos de paz, com termos de aceitação para ambas as partes, dando-se assim, um cessar de fogo. De conversa em conversa, fomos mantendo uma relação pacificada, sobretudo com o passar dos anos.

Porém, só quando nos encontramos no “covil do lobo”; no denso nevoeiro que turva a visão e até a esperança de mais à frente avistar o horizonte; quando nos deparamos na beira do abismo dos nossos próprios limites, é que realizamos que não bastam conversas passageiras com a fragilidade, nem discursos decorados sobre acordos de paz intitulados “Ser frágil não é ser fraco, é sinal de fortaleza”, sem compreender na totalidade o seu significado. Essas conversas de quem lida, mas evita, impedem o abraçar inevitável da prosa dialética que o encontro com a nossa profunda fragilidade pede, de modo a construir uma vida encontrada com a verdade.

Durante muito tempo coloquei o “Como?” das questões, a forma, o invólucro, o externo e exterior, como algo menor face aos “Porquê?” e “Para quê?” das interrogações, ao conteúdo, ao recheio, ao interior e por isso, achava eu, ao mais íntimo.

Contudo, estudando diferentes rituais performativos, como meios de comunicação além da palavra escrita, em distintos povos na África do Sul, no Sudão do Sul, entre muitos outros e variados países, apercebi-me da maravilha do corpo humano e do quanto este, de forma simples e certeira, demonstra os nossos mais profundos anseios, sem necessitar de palavra escrita ou falada, operando somente por gestos, descrevendo a performance mais bela e natural: a da fisionomia humana que reporta sem pretensiosismos os segredos mais recônditos do coração.

Num momento de total anseio de afeto, as minhas palavras, escritas ou faladas escassearam, e perante a inabilidade da sua expressão, estendi os braços dizendo, através daquele gesto: preciso de ti, de alguém, preciso de amor, sozinha não consigo.

Regressemos àquele abraço desejoso.

Num momento de total anseio de afeto, as minhas palavras, escritas ou faladas escassearam, e perante a inabilidade da sua expressão, estendi os braços dizendo, através daquele gesto: preciso de ti, de alguém, preciso de amor, sozinha não consigo.

Este momento já se passou há um par de meses, no entanto, regresso a ele com frequência, pela forma espontânea com que ocorreu, própria de quem, conversando com a sua fragilidade sem rodeios, se apercebe das suas limitações, e na beira do abismo ou no entremear do espesso nevoeiro aprende a despedir-se da sua autossuficiência e dos medos de se reconhecer criatura vulnerável e carente de afetos, aprendendo e dispondo-se a pedir: uma ajuda, uma mão, um amigo, um abraço.

Quantas vezes não são estas as verdadeiras limitações – as de não nos sabermos reconhecer seres frágeis e delicados – que põem entraves à relação com Deus, criando barreiras ao que Deus nos quer dar?

Tantas vezes temos a vontade de servir, caindo esta, por vezes, em voluntarismos, tantas vezes temos as palavras dedicadas, conquanto quando excessivas, roubando os espaços necessários ao silêncio. No entanto, apesar do tanto que temos para dar, parece que nos falta o mais simples, mas também o mais essencial. Algo que se compõe e dispõe num gesto de abraço: abrindo os braços, estendendo-os a Deus e recebendo a graça transformadora do Seu Amor.

Como podemos querer fazer o bem e servir, encontrar o caminho da verdade e entregarmos a vida pelo outro, sem primeiro bebermos da fonte da Vida, dispondo-nos a receber o Amor do Pai?

E quanto às nossas relações, que bem maior não encontraríamos se usássemos e atentássemos menos às palavras e mais aos gestos, principalmente àqueles que nos dispõem a entrar em relação, como um abraço, amando mas também deixando-nos amar?

Esta foi a minha conversa com a fragilidade naquele momento e nos últimos tempos: um pedido de mudança de foco e um pedido de abertura ao amor.

Afinal, do que eu esperava ser uma conversa com a fragilidade, sobre as minhas limitações e limites, revelou-se conversa sobre o potencial transformador de um descomplicado gesto, que na sua simplicidade e discrição, tanto demonstra e a tanto se dispõe.

O que então precisamos para nos abrirmos a este Amor de potencial inimaginável?

Apenas de um gesto: o de estender as mãos pedindo um abraço, reconhecendo que sozinha, não consigo, entendendo também que uma vez disponível para receber o seu Amor, só nunca estarei.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.