Vivemos hoje tempos únicos; o nosso olhar que se perde ao ver as ruas vazias, também se fixa nas janelas das casas com as luzes acesas ao cair da noite; contrasta o silêncio das ruas com os murmurinhos entre quatro paredes de quem sente que o mundo se encontra inquieto. Cruza-se o que vemos com o que pensamos e sentimos: a incerteza e o medo misturam-se com a esperança e com a vontade de não desistir. Neste tempo, nestes dias em que o tempo ganhou novos significados, que desafios se colocam? Como é que a educação será geradora de oportunidades para um melhor ajustamento das nossas crianças e jovens?
Nunca olhar para o Perfil do aluno à saída da escolaridade obrigatória fez tanto sentido. Homologado em 2017, o mesmo reúne um conjunto de princípios e valores fundamentais sobre os quais importa pensar e refletir. A leitura do mesmo leva-nos à Adaptabilidade e ousadia, um princípio que nos faz refletir sobre o presente: trilhando o caminho para mais uma década, este princípio recorda-nos que a educação no século XXI implica uma adaptação a novos contextos e a novas estruturas. Passadas duas décadas, a Escola encontra agora um contexto para se reinventar, com menos resistências, não obstante, numa corrida contra o tempo.
A dimensão social é fundamental para a nossa sobrevivência: criar comunidades virtuais não substitui as interações presenciais, mas no momento atual são importantes enquanto fontes de suporte, garantindo um maior nível de bem-estar.
A Organização para o Desenvolvimento Económico (OCDE) realizou muito recentemente um estudo com 98 países para aferir necessidades e mapear as respostas que cada país apresenta no atual contexto pandémico. A modalidade de educação online parece ser a resposta mais evidente. Para uma geração que já nasceu digital terá impactos positivos? Poderemos imaginar que a resposta mais intuitiva é sim, mas serão precisos estudos que nos permitam responder com clareza a esta questão.
A Escola não poderá ancorar-se a modelos clássicos de ensino-aprendizagem e o recurso às tecnologias terá de fazer parte de forma mais evidente de novas práticas pedagógicas. Mas este modelo é também ele próprio mais desafiante por vários motivos: porque as crianças e jovens têm de tornar-se mais autónomos no processo de ensino-aprendizagem, e nesse sentido são eles próprios claros construtores do seu conhecimento. Por outro lado, sabemos também que as desigualdades irão ser mais evidentes (entre crianças em situação de desvantagem social e as que não se encontram nessa situação) se não providenciarmos o mesmo conjunto de recursos a todas as crianças – como se esbatem diferenças quando a Escola tem como princípio base a inclusão? Por último, a dimensão social é fundamental para a nossa sobrevivência: criar comunidades virtuais não substitui as interações presenciais, mas no momento atual são importantes enquanto fontes de suporte, garantindo um maior nível de bem-estar.
Voltemos à adaptabilidade, mas agora como pertencente ao leque de competências sociais e emocionais. Muitas vezes designadas por soft skills, as competências sociais e emocionais são hoje o pilar para a nossa sobrevivência. Os alicerces para o nosso bem-estar. Globalmente podem definir-se como os processos através dos quais as crianças e jovens “adquirem e aplicam de forma eficaz os conhecimentos, atitudes, e competências necessárias para compreender e gerir emoções, estabelecer e atingir objetivos positivos, sentir e mostrar empatia pelos outros, estabelecer e manter relações positivas, e tomar decisões responsáveis” (CASEL, 2012, p. 4).
Em alguns países a aprendizagem social e emocional surge enquadrada nos currículos escolares, por se considerar que tal como a matemática ou as ciências, torna-se fundamental ensinar de uma forma gradual e estruturada um conjunto de competências chave desta natureza, para lidar de uma forma mais bem sucedida com o presente e com o futuro e num conjunto alargado de esferas de vida (familiar, escolar, pessoal no âmbito do desenvolvimento de um projeto de vida). É por isso que estes programas são pensados e implementados desde o pré-escolar. Os resultados de estudos conduzidos há mais de uma década evidenciam que os seus efeitos são muito positivos: as crianças que são sujeitas a programas de competências sociais e emocionais apresentam, por comparação com crianças que não beneficiam deste tipo de intervenção, maiores níveis de bem-estar, melhores resultados escolares, um maior envolvimento com a comunidade e mais sucesso ao longo da vida.
A Escola – que muitas vezes se substitui a ambientes familiares menos securizantes – deve assumir um papel ativo neste processo, estimulando as crianças e jovens a ser agentes da sua própria mudança; num momento ímpar das nossas vidas o papel da escola deve ser mais evidente: importa investir mesmo que à distância, em atividades e iniciativas que promovam não só a adaptabilidade, mas também um outro leque de competências sociais e emocionais chave: a resiliência, a resolução de problemas, o pensamento criativo, ou a autorregulação (emocional), são alguns exemplos. É verdade que em Portugal tem existido sobretudo nos últimos dois anos um forte investimento em termos de apoio a projetos deste cariz, mas sabemos também que os impactos são mais evidentes quando as intervenções são continuadas. Intervenções pontuais não geram mudança.
Os tempos que vivemos podem transformar-se em oportunidades coletivas de reflexão sobre o mundo e o futuro; já existiam? Sim, mas agora mais do que nunca.
Voltemos ao Perfil do aluno à saída da escolaridade obrigatória para uma última reflexão. O foco que este coloca na educação de base humanista centra as nossas crianças e jovens no papel que os mesmos devem ter na construção de uma sociedade mais justa, centrada na dignidade humana e na ação sobre o mundo enquanto bem comum a preservar. Os tempos que vivemos podem transformar-se em oportunidades coletivas de reflexão sobre o mundo e o futuro; já existiam? Sim, mas agora mais do que nunca. Assumiram contornos mais globalizantes, e a perceção de uma pertença supra-ordenada mais saliente (somos todos humanos) com um objetivo comum (a sobrevivência). A questão que se coloca é se saberemos fazê-lo hoje, a partir das nossas casas?
Que papel têm os educadores (cuidadores e professores) nesta reflexão? Como podem fazê-la no momento atual que vivemos? A minha primeira resposta seria a Escola colocar desafios claros e regulares aos alunos sobre esta matéria, aproveitando as diferentes disciplinas: o que veem pela sua janela? (numa aula de Educação Visual). Como lhes entra o mundo pela televisão? (numa aula de português ou de geografia). Qual o seu papel na sua comunidade mesmo a partir de casa? (numa aula de cidadania). Porque é importante a matemática na atual situação? (aula de matemática). Qual o papel das ciências na procura de soluções? (aula de Estudo do meio/Ciências/Biologia).
E os pais/cuidadores? Uma refeição, um momento do dia, pode ser guardado para escolher um tema para debater em conjunto. Em todas as idades podemos estimular o pensamento crítico adequando essa análise ao nível de desenvolvimento e maturidade da criança. E, por último, qual o papel da comunicação social? O #EstudoEmCasa, enquanto experiência inovadora para esta geração, e um exemplo de verdadeiro serviço público, pode ser sem dúvida um canal de excelência para esse efeito.
Educar é criar oportunidades para que as crianças e jovens olhem para além de si mesmas; fomentar o pensamento crítico é extraordinariamente importante e um motor para promover a tomada de decisão (mais) responsável. E só existirá sustentabilidade com gerações mais conscientes e críticas. Fica o desafio.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.