Educar a vontade e a confiança

Por ser um momento de grande incerteza e talvez, para muitos de nós, “o mais exigente numa geração”, o perigo da divisão é latente.

Neste tempo de Quaresma – e sobretudo neste tempo de quarentena e confinamento domiciliário, em que nos é pedido que fiquemos em casa através dos telejornais, dos noticiários televisivos, de pivôs de telejornal e de hashtags chamativos – somos convidados a refletir sobre a vida de Jesus, através dos Evangelhos, e a refletir sobre a nossa própria vida, num ato contínuo de conversão que traduz, na realidade, a condição do cristão. O nosso exame de consciência e a correspondente procura pela nossa melhoria a cada dia requer, a maior parte das vezes, que contemplemos os nossos maiores defeitos e os momentos em que sentimos mais incerteza, inquietação e fraqueza. Para alcançarmos o Bem, temos muitas vezes de perceber o que é o Mal.

Quando pensamos no Diabo, não é necessário pensarmos numa figura chifruda e assustadora. Para pensarmos no Diabo, basta pensarmos na divisão. A divisão dentro do nosso país, da nossa comunidade, da nossa família e, não poucas vezes, dentro de nós. Este tempo em que se nos é exigido que fiquemos em casa e que aguardemos com perseverança a passagem desta pandemia da doença COVID19, parece-me ser o momento ideal para imitarmos Jesus e não cairmos neste perigo da divisão.

Estamos a viver circunstâncias que muitos de nós até há pouco tempo não achavam possíveis (eu, por exemplo, há duas ou três semanas nunca pensei que estivesse dali a 3 ou 4 dias em quarentena – muito menos que Portugal pudesse vir a estar em Estado de Emergência!). Por ser um momento de grande incerteza e talvez, para muitos de nós, “o mais exigente numa geração”, o perigo da divisão é latente. É latente porque necessariamente ficaremos mais impacientes por vermos o tempo passar mais depressa do que o problema que enfrentamos. É latente porque, na nossa impaciência, poderemos cair no perigo de antagonizarmos aqueles com quem vivemos e com quem partilhamos este desafio. E é ainda latente porque a nossa impaciência pode levar ao desespero fazendo-nos perder completamente a racionalidade e deixando-nos levar por comportamentos irados, arrogantes e descompensados. Mas a pergunta é… Como é que podemos educar a nossa vontade para não cairmos neste perigo?  Como é que podemos ser mais sensíveis a esta tensão constante entre o Bem e o Mal? Conseguindo esta sensibilidade, como é que podemos tentar escolher sempre o Bem?

A leitura da passagem do Evangelho de São Lucas que nos descreve o episódio das tentações de Cristo no deserto dá-nos orientações importantes quanto a esta matéria. Para que possamos seguir esta orientação são necessários trabalho, disciplina e sobretudo a vontade de nos queremos educar. Porquê? porque é um momento em que a confiança em Deus, que Jesus demonstra ao longo da passagem – revelando toda a sua resiliência mesmo “sentindo fome” – ganha um papel de destaque. Esta Confiança é mais uma vez demonstrada através da passagem do Evangelho de São Marcos que foi lida no final da passada semana na bênção Urbi et Orbi, numa praça de São Pedro silenciosa sob o olhar da Cruz de Cristo que salvou Roma da peste em 1552 (para ler a homilia do Papa Francisco clique aqui). É isso que este período de quarentena nos pede. Confiança em Deus, no futuro e no fim da tempestade.

 

Confiança na sua Palavra de perdão e de misericórdia. E Confiança de que Deus trilhará sempre connosco o melhor caminho.

 

Poderíamos pensar “Sim… Mas… Jesus é Deus. Eu não sou Deus. Não tenho esse tipo de resiliência”. É verdade. Nós não somos Deus. Não somos autossuficientes. Mas Santo Inácio de Loyola também não o era, e revelou ao longo da sua vida (tal como nos é dada a conhecer) uma Confiança inabalável no Senhor, no autoexame, e na Palavra. Santo Inácio educa-se ao longo da sua vida para conseguir distinguir o Bem do Mal. Tenta discerni-los mesmo quando os seus atos seriam aparentemente piedosos e aparentemente bons Inácio deixando a decisão a Deus, confiando Nele. Esta confiança em Deus é também revelada no parágrafo 15-16 do Capítulo II da sua Autobiografia.

Durante a sua peregrinação a caminho de Monserrate, Santo Inácio – que nessa altura era ainda, “apenas”, Iñigo – encontra um mouro. E, partilhando o caminho com o mouro, vão falando das coisas espirituais surgindo, ao longo da conversa, a questão da virgindade de Nossa Senhora. Ao mouro, o facto de Maria ter concebido Jesus no seu seio sem a intervenção do homem, mas por via do Espírito Santo parecia razoável, mas não podia, no entanto, entender como poderia Nossa Senhora continuar Virgem após esse facto. No meio desta conversa, o mouro tem de se adiantar no caminho uma vez que tinha pressa. Conta então a Iñigo que tencionava parar em certa vila. É, após perder de vista o mouro, que Iñigo se confronta com o Inimigo e se encontra dividido. O peregrino sente-se furioso pela falta de respeito que, no seu entender, o mouro demonstrou pela Virgem encontrando-se dividido entre fazê-lo “pagar por isso” ou continuar o seu caminho, perdoando-o.

Iñigo encontra-se profundamente perdido. Não sabe o que fazer perante esta incerteza e esta indivisão. É, neste momento que, Iñigo, reconhecendo-se perdido deixa a decisão a Deus. Tanto na encruzilhada real como na encruzilhada espiritual, confia-Lhe a decisão largando as rédeas da sua mula confiando que, se a mula se dirigisse ao caminho que iria dar à vila, deveria Iñigo fazer o mouro pagar pelo “desrespeito” demonstrado. Se, por outro lado, a mula se dirigisse ao caminho real que iria dar a Monserrate, esta seria a prova provada de que Deus lhe pedia que concedesse ao mouro o seu perdão. É neste momento que acontece algo incrível. Apesar de o caminho para a vila estar muitíssimo mais perto da mula do que o caminho real, largadas as rédeas, dirigiu-se a mula ao caminho para Monserrate deixando então Iñigo, o mouro e a vila.

Este episódio da vida de Santo Inácio demonstra a Confiança inabalável deste Santo no Senhor. Confiança em deixar-lhe a decisão em momentos de grande divisão e incerteza. Confiança na sua Palavra de perdão e de misericórdia. E Confiança de que Deus trilhará sempre connosco o melhor caminho. O ato de confiar em Deus e na sua Palavra mesmo quando tudo e todos parecem apontar para o sentido oposto requer discernimento. Essa capacidade de discernir educa-se. Logo, educa-se também o ato de confiar.

E é esta a Confiança que hoje precisamos. Confiança para fugir do isolamento e falar com aqueles com quem habitualmente não falamos, como Jesus e a Samaritana ou Inácio e o mouro. Confiança para largarmos as rédeas da mula e deixarmo-nos guiar e desfrutar do caminho. Confiança para imitarmos Jesus e Inácio.

Desfrutemos deste tempo de Quaresma e de quarentena com a perfeita confiança de que este tempo passará e sobretudo de que vamos todos ver-nos outra vez, seja para uma tarde ao sol na praia, um mergulho no mar ou a merecida imperial de sexta-feira à tarde. Até lá, confiemos.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.